terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Praga



Daiana contemplou seu trabalho com um meio sorriso de satisfação. Estava dando tudo certo. No chão, os vários símbolos haviam sido cuidadosamente desenhados com cera, giz, sal, carvão e mais uma miríade de pós e pedras. Os símbolos ficavam entre dois círculos, um grande e um pequeno. No pequeno, um grande pote de vidro com tampa de rosca guardava uma centena de baratas vivas, que se remexiam umas por sobre as outras, doidas para sair daquela prisão transparente. No círculo maior um homem jazia inconsciente, com pulsos e tornozelos amarrados, caído em posição fetal. Daiana se ajoelhou ao lado do homem. Ela segurava uma grande barata de Madagascar nas mãos, acariciando sua cabeça minúscula entre as antenas com o dedo indicador. Daiana gostava de baratas por todo mundo as detestava, isso fazia com que ela se identificasse com esses insetos. Nunca tivera medo delas, nem nojo, por vezes apreciava sua companhia silenciosa. E agora ainda poderia usá-las para punir o mau-caráter caído no círculo grande desenhado no chão.

“Vai”, disse ela para a barata de Madagascar. O inseto abriu as grandes asas retas e voou por pouco tempo, aterrissou sobre uma orelha do homem, sentindo sua pele com as antenas, e ficou ali. Com a mão que antes segurava a barata, Daiana sacou uma faca grande e afiada, encostou sua ponta contra o pescoço, logo abaixo da orelha de onde a barata observava, e então empurrou a lâmina, lentamente, mas com firmeza. Primeiro um filete de sangue escorreu, depois as camadas de pele cederam, a faca desceu rápida pra dentro do pescoço, e o sangue borbulhou para fora. A grande barata desceu duas patas da orelha e abaixou a cabeça para o sangue que vertia da ferida. Em goles minúsculos, a barata se alimentou do sangue quente, o homem engasgou, seus olhos se abriram arregalados por um momento, Daiana retirou a faca, aumentando a torrente de sangue e a poça que ele formava por baixo. O homem tossia mais sangue. Daiana pegou o pote de baratas e rapidamente desrosqueou a tampa. Libertando as baratas frenéticas.

Daiana se ajoelhou, deixou que as baratas a cobrissem, tateassem sua pele nua com as antenas, mordiscassem seu peito e roessem seus lábios. Para Daina, era como ser beijada por uma centena de bocas por todo o corpo, foi um momento de êxtase. Então, todas as cem levantaram voo, em uníssono, e logo depois se jogaram na poça de sangue no chão, bebendo furiosamente, rolando por sobre o vermelho espesso, pisando umas nas outras, saciando-se de sangue condenado. Daiana se levantou, nua, excitada, e observou enquanto a vida fluía do homem para as baratas. Novamente ela se ajoelhou e esperou até que o homem estivesse definitivamente morto, então as baratas pararam de se mexer, viraram-se para ela, todas ao mesmo tempo, depois olharam o corpo, sentiram o sangue com as patas e as antenas. De repente, levantaram voo, todas juntas, chefiadas pela grande barata de Madagascar, e fugiram pela pequena janela circular aberta, deixando para trás um cadáver de outra vida e a um sorriso malicioso no rosto de Daiana.

O homem amaldiçoado chegou em casa no meio da madrugada, trôpego de cansaço, desnorteado, não conseguia sequer articular pensamentos complexos. Sua cabeça parecia mais lacônica do que de costume, repetindo palavras soltas como “fome’, “cama” e “Marisa”. Sem perceber foi para os fundos da casa, era o procedimento padrão de quando voltava tão tarde, já que a porta da frente era muito barulhenta. Não conseguiu abrir a porta. Não encontrou e nem tinha a menor ideia de onde tinha deixado as próprias chaves. Esgueirou-se de qualquer jeito mesmo pela pequena janela do banheiro que sempre ficava aberta. Sempre achara que aquela janela era pequena demais para uma pessoa, pelo jeito estava errado. “Cadeado”, pensou vagamente, tentando não se esquecer.

Mas assim que se deu conta de estar mesmo dentro de sua casa foi invadido por uma súbita e gigantesca saudade de sua esposa Marisa. Aquela noite havia sido louca e terrível e tudo o que ele queria era deitar ao lado dela na cama e abraçá-la para dormir envolto em seus cabelos cheirosos. Mesmo do banheiro conseguia sentir aquele aroma doce que lhe era tão familiar. Subiu voando as escadas até o quarto, desesperado, se batendo na parede às vezes. Chegou ao quarto, a porta entreaberta não foi obstáculo e assim que entrou viu Marisa, deitada na cama, adormecida, esparramada, ofegante de sono e calor. A pele morena quase que nada coberta por uma camisola branca de alcinhas fina e desbotada. Instintivamente seus planos mudaram, não conseguia mais resistir àquela fêmea saudável e indefesa. O homem amaldiçoado avançou sobre ela, sentindo seus pés e pernas, entrando pela camisola. Não havia calcinha. Tateando foi subindo por seu corpo, sentindo cada poro coberto de colônia, chegou ao pescoço, à boca, beijou cada cantinho dos lábios e mordiscou de leve a língua, fez a escalada derradeira pelo nariz e contemplou seus olhos fechados. Sem nunca se desencostar do corpo da mulher, começou a vasculhar sua intimidade, procurar o calor e a umidade reconfortantes. O homem amaldiçoado queria amar daquela vez como se fosse a última, beijá-la como se fosse a única.

Marisa acordou de repende no meio da noite, sentindo um desconforto estranho, como se vários insetos caminhassem sobre ela. Abriu os olhos e viu, a dois centímetros deles, a grande barata de Madagascar que comandava o enxame de uma alma só. Assustada, tentou fugir e ao se mexer percebeu que dezenas de baratas lhe cobriam o corpo, roíam os lábios, roçavam-lhe asas marrons nos mamilos e tentavam entrar por entre suas coxas. Uma delas parecia já ter conseguido. A esposa traída gritou e correu, sacudindo-se e estapeando-se enquanto avançava para fora do quarto. Com os olhos fechados, em pânico pelo nojo, Marisa levou a mão à orelha direita e percebeu que ali ainda estava grudada a grande barata de Madagascar. Arrancou-a, em pânico, apertando os olhos, tremendo, chorando, acelerou ainda mais, tropeçou no primeiro degrau das escadas e rolou até o térreo, batendo a cabeça várias vezes nas quinas de azulejo. Morreu com uma expressão cheia de medo, nojo e desespero no rosto.

Quando o homem amaldiçoado percebeu o que lhe havia acontecido, depois de matar a esposa, começou a pensar no que faria a seguir. Viver naquela forma de enxame de baratas seria impensável. Sentia sua consciência se desvanecendo aos poucos. Seus pensamentos deixaram de ser palavras isoladas e foram se tornando imagens, cheiros, sons e sensações. Não conseguia ler, mal conseguia reconhecer as pessoas. Pareciam todas iguais, um enxame de uma praga gigantesca muito maior do que ele próprio, andando e correndo desvairadas pelas ruas, prédios e casas. Mas havia um lugar do qual ele se lembrava, a casa de Daiana.

O homem amaldiçoado nunca levara as “bruxarias” da amante a sério. Mas achava divertido transar com ela, com símbolos tatuados ou pintados pelo corpo. Uma vez ela pintou um símbolo na barriga dele, com uma mistura líquida que ele preferiu não saber o que continha. Nesse dia sua ereção foi a mais duradoura de toda a sua vida. A mágica fora mais eficiente que qualquer pílula azul, mas ele negou. Mentiu para si mesmo que fora apenas um efeito placebo, uma sugestão psicológica que o fez alcançar, sozinho, o ápice de sua virilidade. É claro que isso nunca mais aconteceu, nem quando estava com a amante, nem com a esposa. Olhando em retrospectiva, juntando tudo, agora ele percebia que devia ser tudo verdade. Por Deus, Daiana trabalhava como cozinheira, quantas pessoas ela pode ter enfeitiçado no trabalho? Felizmente um vingador silencioso estava a caminho.

Uma nuvem de baratas voando daquele jeito esquisito, com as asas zunindo e os corpos meio pendurados, chegou à casa de Daiana. Baratas podem ficar dias sem comer, graças à gordura que carregam por dentro, aquele creme branco que suja as solas dos chinelos quando uma delas é esmagada. Uma barata americana comum tem uns três ou quatro centímetros. Numa casa, há pelo menos uma centena de lugares onde uma delas pode se esconder. Até aqui nenhuma novidade, mas era essa a estratégia do homem amaldiçoado. Esconder-se na casa da bruxa e esperar, esperar até o momento certo, quando ela não tivesse como se defender.

A essa altura, já estava acostumado a seu novo corpo. A grande barata de Madagascar era como a cabeça, e as outras eram como dezenas de pequenas mãos (algumas das cem já tinham morrido), mãozinhas marrons de seis dedos, asas e antenas. Ele entrou quando ela estava fora e se escondeu. Os humanos que temem baratas perderiam completamente a cabeça se soubessem quantas delas estão escondidas a apenas alguns metros sem que eles saibam. Em cima do armário, evitando meticulosamente a teia da aranha que também vive ali. Nas fretas escuras e poeirentas entre os móveis. Dentro de botas militares, sapatos de dança e outros tantos pares que ficam meses sem uso na sapateira. Os quadradinhos escuros da mini adega no armário da cozinha. Ralos, pias, atrás das privadas e em cima dos chuveiros. Atrás das naturezas mortas penduradas na parede da sala. Dentro de abajures que sempre ficam apagados. Louças velhas lá no fundo escuro do armário. Caixas de papéis velhos, por Deus, como elas adoram as caixas de papéis velhos. Os olhos humanos miram sempre à frente, no máximo em volta. Atrás, em cima, embaixo e dos lados, centenas de baratas estão escondidas ao redor de cada ser humano.

O plano corria bem, até o homem amaldiçoado resolver testar a reação de Daiana às baratas. Lançou voando uma de suas mãos cascudas até ela, E pousou na porta da geladeira, depois de passar bem em frente aos seus olhos enquanto ela cozinhava. Ela se sobressaltou e soltou o talher que tinha na mão, ele caiu sobre um ovo e o quebrou. Daiana olhou para o lado e abriu um sorriso. Com dedos delicados ela retirou a pequena barata da porta da geladeira e a afagou carinhosamente entre as asas enquanto ria. A barata abriu as asas e aproveitou o carinho. Daiana chegou com o rosto bem perto da barata, sentindo seu cheiro, e por um segundo o homem amaldiçoado pensou que ela ia devorá-la. Ela apenas cheirou, mas logo depois agarrou firmemente as asas do inseto com dois dedos em pinça e olhou em volta, sorrindo, com aquele olhar sexy e insano que ela fazia quando pensava em depravações em geral. Daiana gritou alguma coisa que o homem amaldiçoado não compreendeu, olhou em volta, como que procurando algo, depois pegou o talher que tinha derrubado, e continuou procurando alguma coisa nos cantos da cozinha. Só que não era um talher, era um pequeno maçarico para, em um futuro não muito distante, tostar a casca crocante do crème brulée que estava a ponto de começar a cozinhar.

Daiana aproximou o maçarico da barata que se remexia furiosamente entre seus dedos, e então o ligou. Uma pequena chama azul precipitou-se da ponta do mecanismo, como a glande de algum demônio não circuncidado. A gordura por dentro da casca da barata ferveu e borbulhou, enquanto ela agonizava, sendo frita de dentro para fora uma minúscula coluna de fumaça subiu se seu corpo. Enquanto um som de tsssssss de algo morrendo queimado fez-se entrar pelo ouvido de Daiana. O som era muito baixo para chegar ao resto da casa, mas mesmo que fosse alto como uma britadeira o homem amaldiçoado não teria escutado. Estava ocupado demais sentindo a si mesmo ser queimado vivo para reparar. Quando uma das baratas morria sua dor era compartilhada por todas e ficava difícil, por alguns instantes, manter o controle do enxame. Algumas das baratas saíram cambaleando, ou voando trôpegas, desorientadas pela dor de sua companheira morta.

Daiana gritou de novo, dessa vez até mesmo uma barata conseguiria entender o “A-HÁ!” que ela soltou. Era isso que ela queria. De alguma forma percebera que aquela barata curiosa na geladeira era uma das cem que usaram alguns dias antes num feitiço de vingança contra o amante que a dispensara, alegando santamente que não queria mais trair a esposa e que iria se esforçar para ser um bom e fiel marido. A bruxa parou de fritar a barata, que neste ponto já estava bem...  ao ponto, então enfiou-a na boca e mastigou, ouvindo a crocância de suas patas e de sua casca tostada. Saboreou a barata por alguns instantes e engoliu, para horror do homem amaldiçoado. Mesmo em sua condição atual achava absurdamente repugnante se alimentar de uma barata. Mas logo sua sensação de nojo alheio foi interrompida por um novo relâmpago de dor. Uma de suas mãos estava sendo esmagada entre o chão da cozinha e o pé nu de Daiana.

Numa fúria sádica e risonha, Daiana saltitou pela cozinha, esmagando Baratas tontas sob seus pés descalços. O homem amaldiçoado adorava beijar aqueles pés quando ela ficava sobre ele na cama e os esfregava em seu rosto. Vamos ver o que acharia disso agora. Além disso matava mais algumas que voavam em espirais desconexas, batendo palmas, ou com as mãos nuas bem abertas, esmagando aquelas que estavam na parede. A dor era insuportável, se ainda fosse racional, se ainda tivesse sanidade, o homem amaldiçoado teria enlouquecido. Mas seus recém adquiridos instintos eram mais simples e diretos. Era um animal menor e mais fraco, acuado, sem qualquer possibilidade de fuga, encarando a morte, a resposta instintiva gritava em sua cabeça, um tipo de rugido sem som, urgente e furioso que só poderia significar uma coisa: “ATAQUE!


Ignorando a dor tanto quanto podiam, as baratas saíram voando a toda velocidade de seus esconderijos e avançaram contra o rosto de Daiana. Forçando a entrada em seus olhos, ouvidos, narinas e na boca. Daiana fechou os olhos com força e tentou tirar baratas das orelhas com as mãos. Cerrou os dentes e sentiu o gosto de gordura de barata crua na boca. Sim, baratas têm exatamente o mesmo sabor que você imagina que elas devem ter. Dezenas de baratas forçaram o caminho, Daiana tossiu e cuspiu algumas delas, mas não era suficiente. O homem amaldiçoado entupiu o esôfago e a traqueia de sua amante bruxa e assistiu de cima da geladeira, pelos olhos e antenas da grande barata de Madagascar, enquanto ela convulsionava e morria sem ar.

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

O novo mundo de Sofia

Sofia era a enfermeira mais alta do hospital, que nos anos oitenta e noventa era um dos lugares que mais faziam partos em todo o ABC paulista, mas hoje em dia é só um hospital particular comum. Ela tinha um e oitenta e seis de altura, e ainda usava salto alto quase todos os dias, ficando assim com mais de um e noventa. De vez em quando, suas colegas de menor altitude pediam que pegasse coisas nas portas e prateleiras mais altas dos armários. Ela fazia estes favores de muito bom grado, adorava ser alta, e adorava que as pessoas se impressionassem com sua altura.

Normalmente ela trabalhava à noite, porque não tinha problemas com o sono e gostava de ganhar o adicional noturno. E foi quando ela estava trabalhando à noite que um antigo amigo à viu de longe e veio lhe cumprimentar. Ela não estava muito bem naquele dia. Apesar de normalmente ser uma pessoa simpática e bem humorada, esse comportamento vinha mudando nas últimas semanas, desde aquele dia.

Naquele dia estava garoando forte, e mais cedo havia chovido bastante. Na grande São Paulo, chuva sempre resulta em duas coisas: engarrafamentos e acidentes – e acidentes geram trabalho para médicos, enfermeiros e toda a equipe do hospital. Pelo menos uns quatro acidentes na mesma noite, uma meia dúzia de vítimas. Ossos quebrados, sangue, cortes a suturar. Por isso Sofia não percebeu quando pegou a bolsa errada. Normalmente as enfermeiras tinham dificuldade de identificar os produtos no alto, mas com ela era sempre terrível pegar o soro, que ficava lá em baixo no armário. E naquela noite agitada, na pressa não conferiu o rótulo que dizia claramente “vaselina”.

A vaselina entrou na veia de uma paciente, uma menina, e Sofia a deixou ali, recebendo na circulação sanguínea o que pensava ser soro. Mas a vaselina, essa antissocial, não se mistura com o sangue e se aglomera em trombos, bolhas que entopem os vasos, muitas vezes nos pulmões. E foi o que aconteceu, logo a menina começou a sentir falta de ar e a cuspir sangue, a mãe chamou as enfermeiras, mas a vaselina já se acumulava no peito da paciente. Debatendo-se, tentando em vão respirar, aos doze anos a menina morreu.

O hospital rapidamente fez um acordo com a família da menina morta e o caso não foi parar na imprensa, assim seu marido não ficou sabendo de nada, nem seus filhos, nem seus pais. E ela foi sumariamente demitida. Mas não conseguiu contar para o marido, ele sempre se orgulhava dela ser enfermeira. “Minha mulher salva vidas, faz um trabalho de Deus”, dizia sempre aos irmãos no culto de sábado. Chegou a sair de casa à noite, logo após seu primeiro dia de desempregada, entrou num motel, sozinha, e lá ficou, até terminar o horário que seria de seu expediente.

Sozinha, deitada na cama redonda, apenas com uma luz vermelha parcial fracamente clareando o quarto, Sofia esticou o braço e pegou o telefone em cima do criado mudo. Não sabia se era só esperar alguma telefonista ou se tinha que discar alguma coisa, nunca estivera num motel antes. Esperou até que caísse a linha, depois apertou o gancho e discou zero, pediu uma batida de espumante com morango para a atendente, era o máximo que se atreveria a pecar, mesmo naquela situação.

Enquanto esperava a bebida, notou alguns controles colados na parede, ao lado da cama. Testando-os, descobriu que havia luzes amarelas também, rádio, ar condicionado até, e algum daqueles botões ligou o aparelho de televisão que ficava na parede em frente à cama. Jô Soares entrevistava alguém que ela nunca vira, mexeu num outro botão e a imagem mudou para um culto evangélico de outra igreja, uma que ela detestava. Mais alguns canais acima e de repente foi surpreendida por uma mulher gemendo alto, enquanto transava com um homem que mal aparecia na tela, a não ser pelo pênis.

Sofia ficou atônita. Suas pálpebras não baixavam – e o queixo não subia. Nunca tinha visto aquilo assim, desse jeito tão... tão... depravado. A câmera mergulhava em zoom para as partes íntimas ligadas do casal, e depois passeava pelo corpo da loura maquiada, apenas para voltar ao close dos sexos. Como essa mulher podia se dar a essa humilhação? Nem por todo o dinheiro do mundo uma pessoa deveria vender sexo assim, era a mesma coisa que se prostituir. Com certeza ela ia para o inferno...

Será que ia mesmo? Talvez ela só estivesse fazendo aquilo por um bem maior, para ter dinheiro para cuidar dos filhos... talvez até dos pais. Sofia se lembrou de um pastor europeu, que há muito tempo viera visitar a igreja que ela frequentava. Naquela época, esse pastor disse que Deus não enxergava o mal, apenas o bem, assim, talvez aquela mulher escancarada e tendo as intimidades exploradas diante de uma câmera tivesse um bom motivo para isso, uma boa intenção. E Deus certamente veria com bons olhos o sacrifício dela, afinal, se exibir tão degradantemente assim deve ser difícil.

Uma campainha tocou alta e Sofia se assustou, desligou rápido, com vergonha de que alguém do outro lado tivesse escutado. Foi até a porta e perguntou quem era. Silêncio. Então percebeu uma porta de alçapão na parede, abriu-a, e lá estava seu coquetel. Era simples, prático e discreto, achou aquela solução elegante e inteligente. Pegou a taça fina e comprida e se sentou na cama, ligando a televisão de novo.

Passou as horas seguintes vendo filmes pornográficos, reconhecendo, com certa vergonha, as coisas ali que já tinha feito com o marido. Casara-se virgem, e ele também, a noite de núpcias fora constrangedora e desajeitada, mas romântica ainda assim, e de lá para cá aumentaram a confiança um no outro e aprenderam a explorar seus corpos. Já se iam onze anos de casamento comprometido e companheiro.

O marido, Renan, vendedor, era gerente da loja de sapatos onde trabalhava até três meses atrás, mas perdera o cargo para que a dona da empresa desse emprego para seu novo namorado dez anos mais novo. Assim, Sofia vinha sustentando a família quase sozinha e agora não tinha a menor ideia do que iria fazer para continuar cumprindo a função de provedora principal. E tinha que fazer algo rápido. Com esse monte de dúvidas rodando na cabeça foi para casa de manhã.

Na noite seguinte, sexta-feira, saiu de casa para trabalhar, como sempre, mas, sem querer ficar no motel de novo, e sem ter o que fazer, ficou rodando de carro por aí, até parar na Avenida Paulista, há dezenas de quilômetros de casa. Parou o carro numa rua adjacente e ficou andando pelos arredores da larga via, vendo as casas grandes e ricas que apareciam quando se descia no sentido dos Jardins.

Enquanto ela descia a rua, de saia até os joelhos e blusa de mangas compridas, um carro parou a seu lado no meio fio, e um homem, já de uns quarenta anos pelo menos, lá de dentro perguntou a ela quanto era o programa. Horrorizada, começou uma discussão com o motorista, ele ficou vermelho de vergonha, balbuciou algumas desculpas, disse que algumas garotas de programa se vestiam discretamente, para homens com mais classe, e assim que conseguiu arrancou e foi embora o mais rápido que pôde.

Sofia ficou perplexa, até voltou para casa mais cedo. Como poderiam confundi-la com uma prostituta? Ela era uma cristã fiel e comportada, não mostrava o corpo, mal olhava ou conversava com homens. Mas mesmo assim alguém ainda achara que ela estava vendendo seu corpo, e ainda se sentira atraído por ela... “homens com mais classe” dissera o homem envergonhado, quanto será que uma mulher ganhava nesse ramo?

Não! Não queria nem pensar nisso! Onde já se viu uma mulher decente pensando em quanto ganharia se fosse prostituta? O que Deus iria pensar se a visse com esses pensamentos sujos? Se bem que... talvez Deus não visse, e visse apenas as boas intenções dela, assim como devia fazer com a atriz pornô... se ela conseguisse se manter longe de casa, tudo escondido, sem levantar suspeitas...

Passou as noites do fim de semana em casa, dormindo mal, preocupada com seu futuro e as consequências para sua família. Não via alternativa, já que não iria contar a ninguém. O assassinato, ainda que não proposital e cuja culpa lhe consumia, poderia acabar com o renome da família em sociedade, e também com suas relações uns com os outros. Não arranjaria outro emprego fácil, muito menos um que ganhasse tão bem quanto antes, então decidiu, antes de se deitar com o marido na noite de domingo, que a partir do pôr do Sol de segunda seria prostituta.

E que Deus a ajudasse, implorou.

Na noite de segunda-feira, arrumou-se o melhor que pode, ainda sem se achar vulgar, colocou o jaleco na bolsa, para disfarçar, e saiu para trabalhar. Estava muito nervosa, e nesse estado falava em inglês como uma forma de refúgio, mesmo que sozinha, porque o outro idioma criava um tipo de armadura psicológica entre ela e o mundo. E sacou daí mais um detalhe de seu disfarce: fingiria ser americana, falaria só em inglês, talvez isso até lhe trouxesse mais dinheiro. Seu nome de guerra? Wisdom.

A primeira noite foi difícil, claro. Teve de fugir de um travesti que lhe acusou de ter roubado seu ponto. Correu o quanto podia de salto alto e só por sorte não caiu. Parou em outra esquina, e finalmente um carro parou para ela. Um senhor grisalho de camisa social e um pouco gordo estava ao volante, combinaram um preço, em inglês, que ele falava aos soquinhos, e ele a levou para o motel. Lá ela pediu uma dose dupla de uísque, que virou de uma vez só, mesmo desacostumada, não conseguiria fazer aquilo só com coquetel de espumante. Sua garganta queimou e ela tossiu. Seu colega de quarto achou graça naquilo e lhe deu tapinhas delicados nas costas, enquanto alisava uma de suas coxas com a outra mão.

Já um pouco tonta e entorpecida, lembrou-se do filme da Bruna Surfistinha, que assistira horrorizada há alguns meses, quando a vida ainda era boa e podia criticar quem fazia aquele tipo de coisa. Tirou a roupa de qualquer jeito e parafraseou a frase da garota de programa: “You can do whatever you want”, ou, em português, “Você pode fazer o que você quiser”. O homem pegou-a, virou e revirou na cama, fez mesmo tudo o que queria. Pagou uma vez e meia o combinado, de livre e espontânea vontade. Antes de ir embora de manhã, Sofia cheirou o dinheiro. Nunca suara tanto para ganhar o pão.

Sentindo-se suja e dolorida, voltou para casa de manhã. Tomou banho antes de ir dormir, apesar de já ter tomado um no fim da noite, ainda no motel. E deitou-se na cama ainda antes de o marido acordar. Pegou no sono rápido dessa vez, e flashes das sensações da noite povoaram seus sonhos. Acordou de tarde com dor de cabeça, mas isso não era desculpa. Precisava se acostumar, precisava do dinheiro, e não podia transparecer nada, uma simples suspeita poderia acabar com seu plano.

As semanas foram se passando. Sofia se acostumava com seu novo ofício, aprendera a beber, e a não beber, mas acima de tudo aprendera muita coisa sobre sexo. Posições e fetiches que ela nem imaginara. Pela primeira vez teve um orgasmo sem ser com o marido, e começava até mesmo a curtir o trabalho e ter alguns clientes recorrentes. Claro que a culpa ainda lhe assaltava de vez em quando, o medo e o remorso também, mas graças à sua nova companheira de trabalho, a vodka (que diferente de outras bebidas podia ser facilmente disfarçada numa garrafa d’água comum), controlava suas emoções e seguia em frente.

Dois ou três meses nessa vida, trabalhando quatro ou cinco noites na semana, e Wisdom começou a chamar a atenção de um certo empresário da noite paulistana. Este homem, um descendente de japoneses, baixo e forte, ofereceu a ela a oportunidade de trabalhar em uma de suas boates, cobrando mais caro de seus clientes – mesmo descontando a parte da casa, e ainda com a possibilidade de atrair muitos novos fregueses.

Sofia não entendia muito bem essa procura toda. Era loura, alta e magra, sim, mas não tinha peitos nem glúteos grandes, não malhava, nem espalhara próteses pelo corpo. Não sabia dançar, nem ser sexy como as outras, e era tão pudica que antes de começar nesse ramo jamais deixara sequer o marido ejacular em seu rosto ou sobre os seios, algo que agora era normal. Aliás, o marido parecia ter ficado feliz depois que ela levara algumas de suas novas descobertas para a cama deles também.

Estava há uma semana já na boate, onde começara a ganhar um pouco mais e estava guardando o que excedia seu antigo salário – para a faculdade dos filhos um dia, ou uma viagem, algo assim. Foi então que um colega de escola, de sua adolescência, reconheceu-a no trabalho, á noite, e veio falar com ela. Mas, julgando tratar-se de outro cliente na noite, sem reconhecê-lo, falou em inglês com ele, e se apresentou com o nome de guerra. Enquanto conversavam por alguns instantes, ele olhava para ela com o olhar fixo e um sorriso bobo, quase que encantado, e ela pensou que esse com certeza lhe renderia algum dinheiro essa noite.

Quando Sofia não percebeu que seu cliente era um antigo conhecido, ele se aproveitou e não disse nada, deixou ela fingir que era Wisdom, conversou com ela em inglês (que ele falava melhor) e logo ela perguntou se ele não queria subir para ela lhe mostrar suas habilidades, o que ele topou sem demora. Diferente de muitos homens com quem já transara nos últimos meses, esse cara novo, que dizia se chamar Bernardo, não quis fazer mil estrepulias na cama, abraçou-a apertado e beijava seu pescoço, gemia de olhos fechados e puxava-a contra si, parecia que queria absorvê-la. Praticamente fizeram amor.

Deitou-se na cama, ainda abraçado a ela, quando terminou. Sofia estava estranhando um pouco a atitude dele, entretanto, sabia o quanto homens sozinhos poderiam ser carentes e já tinha realizado diversas taras. Esse poderia ser somente um fetiche dele. De qualquer maneira, era dinheiro fácil. E era exatamente isso que ela pensava enquanto sorria para ele, deixando que Bernardo acariciasse seus pequenos seios. “Did you like it?” [Você gostou?], perguntou, com seu melhor sorriso inocente falso. Mas nada que já vivera nest profissão poderia tê-la preparado para a resposta do homem que a poucos instantes estivera gemendo em seu ouvido.

“Eu conheço você.”

Por um momento, Sofia se esqueceu de que era Wisdom e não falava português e apenas arregalou os olhos, enquanto sua boca se paralisava, meio aberta, como alguém que ia dizer uma frase de efeito e percebe que soaria estúpida. Quando lembrou da personagem, gaguejou que não entendia o que ele falava, mas não conseguia disfarçar o espanto. Ele apenas sorriu, compreensivo, disse que ela poderia ficar tranquila e que ele guardaria seu segredo. Bernardo chamou-a pelo nome, seu verdadeiro nome, uma palavra que jamais havia sido pronunciada naquele ambiente, e que não deveria estar ali. Era sacrilégio. Como magia, das mais poderosas, a palavra mágica destruiu a máscara de Sofia, seus olhos se encheram d’água, sua garganta doía e sua boca se contorcia. Nada ela pôde fazer, além de se agarrar a Bernardo e chorar.

Depois de alguns minutos apenas abraçado a Sofia, Bernardo acendeu um cigarro, depois de enxugar-lhe as últimas lágrimas. Depois da primeira baforada, sorriu para ela da forma mais terna que podia e lhe assegurou de que não contaria nada a ninguém. A garota de programa se sentia humilhada, violentada. Wisdom era forte, resiliente, encarava qualquer um que aparecesse em sua cama com um sorriso malicioso nos lábios e uma língua estrangeira nos gemidos, mas Sofia era fraca, tímida e submissa. E pior, Sofia se sentia culpada, pela garota que matara, pelo marido que vinha traindo e por todos a quem enganava diariamente, desde sua família a seus clientes. Percebendo o desconforto dela, o homem voltou a falar em inglês, cofiando a barba enquanto terminava de fumar. Sofia olhava atentamente, mas não conseguia se lembrar de onde ele poderia conhecer o cara.

Bernardo era mais baixo que ela. Todo mundo era mais baixo que ela. Mas não podia ser chamado de baixinho também. Não era magrelo, nem gordo e também não tinha músculos suficientes para se dizer que estava em forma. Suas características mais marcantes eram a calvície, que já comera boa parte do alto de sua cabeça e tudo aquilo que um dia poderia se chamar de franja, e também a barba cheia e espessa. O cabelo crescia dos lados e na nuca, tachado de grisalho em alguns pontos. Tinha os olhos fundos e a testa permanentemente conjecturada numa expressão agressiva, que combinava perfeitamente com seus olhos fundos para formar uma autêntica ‘cara de mau’, mas sua voz era surpreendentemente calma e até um pouco aguda. Era um homem sereno e aparentava mais idade do que realmente tinha.

Don’t you remember me?” [Você não lembra de mim], ele disse. E ela não lembrava mesmo, então ele contou que mudara de nome há algum tempo, mas que, quando se conheceram, chamava-se Diego. Sofia vasculhou a memória atrás de possíveis Diegos. Conhecera um na faculdade, mas era negro. Mais a fundo, lembrou-se de outro Diego, um garoto meio esquisito, que mal conseguia conversar com as outras crianças e travava completamente se tivesse que apresentar qualquer coisa. Um menino problemático que arranjara briga algumas vezes e em outras roubou dinheiro dos poucos colegas que tinham algum.

Quando reconheceu a criança-problema no barbado a seu lado na cama, o queixo de Sofia caiu. A última pessoa que esperava encontrar em seu novo ofício era um antigo colega do primário. Ainda assim, sempre é divertido topar com alguém do passado. Passaram alguns minutos conversando sobre a infância e a adolescência, lembrando de antigos companheiros de escola. Bernardo, que insistia em não ser mais chamado de Diego, revelou até que era apaixonado por Sofia na quinta série, por isso não resistira ao impulso de transar com ela quando a reconheceu na boate, admitiu com uma certa vergonha. Um pouco ofendida, um pouco lisonjeada, Wisdom sorriu, corou e disfarçou, com o charme sacana profissional que dominara com a experiência.

Transaram de novo antes que ele fosse embora, mas desta vez não era o pequeno e tímido Diego apaixonado que estava na cama, mas sim o experiente Bernardo. Wisdom conhecera muitos tipos de homens em sua atual profissão, mas este homem gostava de sentir dor como poucos. Pediu várias vezes para que a prostituta lhe batesse no rosto e nas nádegas, arranhasse as costas e torcesse os mamilos. E ela fez, sem o menor problema. Até gostava quando os caras curtiam levar uns tapas, era relaxante e altamente erótico ter o poder, dominar a relação a tal ponto que o parceiro tornava-se um objeto, o alvo de sua ira. Antes de deixar a boate, um pouco sem jeito, tentando parecer educado e esconder o entusiasmo, Bernardo perguntou se poderia voltar. “Sure.” [com certeza], respondeu ela com um beijo carinhoso em seu rosto.

E Bernardo, voltou, é claro. Adorava concretizar já adulto a paixão de adolescência. E Sofia curtia também. Surpreendentemente, se deitar com alguém que já conhecia, como prostituta, trazia um enorme sentimento de cumplicidade. Para ela, o relacionamento deles era um refúgio, sentia-se segura por estar com alguém que a conhecera antes de tudo mudar em sua vida, e que não a julgava pelas escolhas que fizera, só queria estar com ela. Pouco importava se ela era uma mentirosa ou assassina.

Depois de uns dois meses com encontros quase que semanais, Sofia já se sentia confortável o suficiente para se abrir com Bernardo. Ela lhe contava sobre seu casamento, seu antigo emprego, seu marido. Falava para ele coisas que não revelava a ninguém, como a saudade que sentia de tratar pessoas doentes. Falou dos filhos, dois meninos, e de como se preocupava com o futuro deles e com a possibilidade de um dia descobrirem que sua mãe perdera o emprego que adorava e vendia o próprio corpo para sustentá-los. Ficava até ansiosa pela terça-feira, dia em que normalmente o amante-cliente vinha lhe visitar.

Naquela semana, Bernardo apareceu numa quarta, já depois das duas da manhã. Até então Sofia tivera dois homens e pelo menos uns trezentos mililitros de vodka por companheiros. A noite estava agitada então a “pausa” no trabalho, que era estar com ele, foi ainda mais bem vinda. Logo que avistou-o no bar tratou de arrastá-lo para o quarto. Trocaram alguns beijos e carícias, mas algo não ia muito bem na cabeça de Sofia. Talvez fosse a bebida, hormônios, ou o estresse de sua vida dupla, e por vezes tripla, mas enquanto deslizava os dedos pelo braço do homem, deu por si mesma pensando na vaselina que injetara com habilidade dentro de sua última paciente, e imaginou o caminho do líquido através do corpo, até os fatídicos pulmões.

Parou. Com a boca meio aberta, e os olhos se enchendo de água. Seu companheiro logo percebeu que não estava tudo bem. Abraçou-a e afagou seus cabelos louros. Ela se deixou enredar, aconchegou-se e esforçou-se o quanto pôde para conter as lágrimas, mas, como águas que são, as malditas simplesmente fluíram por entre suas dores e pálpebras, correndo livres pelas colinas de suas bochechas até desaguar nas planícies felpudas dos peitorais de Bernardo.

Ele não disse nada, apenas lhe ajeitou no próprio corpo e fez carinhos em seu cabelo. Em português mesmo, ela começou a contar um dia de seu antigo emprego, e ele soube que, falando na língua materna, Sofia havia deixado a máscara de lado. Entre soluços, lutando contra o choro contínuo, ela narrou o fatídico dia em que confundiu as bolsas e matou uma menina inocente de doze anos. Pela primeira vez expôs a alguém toda a culpa que sentia. Pensava em si mesma como alguém com sangue nas mãos, uma criminosa que merecia a forca, ou a cadeira elétrica, o que doesse mais.

Os olhos do casal fixaram-se uns nos outros e Bernardo apenas segurava as mãos de Sofia. Ele não sabia o que dizer, mas conhecia a dor dela. Tinham exatamente a mesma idade e quase as mesmas origens, mas vidas completamente diferentes e, no entanto, tinham a culpa em comum. Um monte de clichês ele poderia lhe dizer, como “você precisa perdoar a si mesma”, “com o tempo isso vai passar” e “aprenda com esse erro e não faça de novo”. Até porque, se não fossem verdade não se tornariam clichês, então ele proferiu todos, como se algo que dissesse pudesse realmente ajudá-la. Recompondo-se, Sofia fitou-o meio desesperada, desculpando-se por ocupar todo o tempo, pelo qual ele tinha pago, com suas reclamações. Bernardo tentou parecer o mais compreensível que podia, dizendo que não havia nenhum problema e que ele gostava de ser útil a ela de alguma forma. Trocaram um beijo nos lábios enquanto se despediam.

Mas as emoções da noite ainda não haviam terminado, oh não, quem dera tivessem. Quando Sofia desceu do quarto de volta para o salão comum, que nesta noite de sexta-feira, pouco depois do início do mês, estava abarrotado, caminhou insinuante por entre poltronas com homens sentados e mulheres de pouca roupa sentadas nas coxas deles. Um prostíbulo é quase como uma balada comum dessas que os jovens frequentam, com a diferença de que nele o homem tem praticamente certeza de que fará sexo com a mulher que escolher, desde que pague. Isso dá aos homens uma autoconfiança enorme para agir como grandes conquistadores.

Um dos homens ali presente chamou a atenção de Sofia. Sofia viu o próprio marido na boate onde trabalhava. Um cara que ganhava menos que ela, e que, segundo ele mesmo, havia perdido o cargo de gerente da loja onde ganhava o pão, e era só um vendedor. Então, Renan, que dava menos dinheiro para as contas da casa, tinha dinheiro para gastar com prostitutas. Mas Sofia só pensou nisso num segundo momento. No primeiro momento ela apenas se escondeu, evitou o cara, viu Bernardo por ali, levou-o para um quarto e contou a ele tudo que estava acontecendo. Contou que o marido dela estava ali embaixo, bebendo, ansioso para gastar com uma prostituta um dinheiro que teoricamente ele não tinha. Por mais que cerrasse os dentes, por mais que engolisse o choro, ele subia de volta, e Sofia nãoconseguia evitar chorar, e continuava falando, entre soluços, com a boca naquele formato estranho que parece um sorriso inadequado de quando as pessoas estão chorando.

Bernardo não sabia muito bem o que fazer. O que ele poderia fazer? Descer lá e começar uma briga? Só o faria ser expulso da boate e ainda iria expor Sofia para o marido. Então Bernardo só olhava para ela, com o rosto lavado e abraçada a ele, e procurava algo para dizer que pudesse consolá-la ao menos um pouco, mas não estava nem perto de encontrar algo. Não há no mundo algo que console uma mulher que faz programa escondida do marido para sustentar a família enquanto ele mente, esconde dinheiro e gasta com garotas de programa. O problema aqui, de forma alguma era o sexo, mas sim a grande mentira.

Sofia puxou o pescoço de Bernardo e o beijou, e continuaram beijando por alguns momentos, até que ela o fez se deitar de costas sobre a cama, de barriga para cima. Só abriu as calças dele, não tirou a camisa nem nenhuma outra peça de roupa. Ela já estava de minissaia mesmo, só colocou a calcinha de lado e sentou sobre ele. Ele não fazia nada. Ela, por cima, agarrada ao pescoço dele, fazia todo o movimento, alternando os gemidos do sexo, com os soluços de mágoa e o ranger de dentes da traição e da vingança. Ela fez, e fez de novo, até que um orgasmo a ajudasse a dissipar ao menos uma parte da tensão que vinha sentindo desde que pousara os olhos no marido. Até que fosse obrigada a relaxar, enquanto as endorfinas desabaladas avançavam por seu corpo exausto. Depois de gozar, Sofia relaxou.

Deitados na cama lado a lado, Sofia e Bernardo passaram algum tempo apenas olhando para o teto manchado, retomando o ritmo da respiração. Até que ela disse “eu preciso de uma prova”, e ele completou “porque ele não pode saber que você viu ele aqui”. Foi Bernardo quem chegou à conclusão mais rápido: “procure o holerite dele”, e foi isso que Sofia fez. Ficou com Bernardo no quarto por um tempo, esperando que o marido fosse embora, depois continuou trabalhando, mas antes de ir embora, seu amante lhe deixou o número de telefone, algo que até então ela não tinha, e disse que ela poderia ligar a qualquer momento, se quisesse ou se precisasse de algo, porque o trabalho dele tinha horários muito flexíveis, e até mesmo no meio da noite, ou do dia, ele poderia vir ao socorro dela.

Sofia foi para casa de manhã, ainda há tempo de encontrar o marido tomando café e lendo jornal antes de ir para o trabalho. “Como foi o trabalho essa noite, amor?”, ele perguntou, como sempre. Sofia respondeu “difícil, muita gente chorando no hospital”. “Alguém morreu?” perguntou Renan. “Talvez, ainda não, mas pode acontecer nos próximos dias” e levou a xícara de café à boca, já sem batom, com a outra mão cravando as unhas na própria palma, por debaixo da mesa. Quando o marido saiu para trabalhar, Sofia foi procurar os holerites nas coisas dele, e encontrou sem muitas dificuldades. Muitos trabalhadores registrados guardam os recibos de pagamento, porque podem ser úteis em uma eventual ação trabalhista no futuro. Descobriu que ele nunca havia perdido a função de gerente, continuava ganhando o salário mais alto. Ela tirou alguns dos papéis, mais recentes, e guardou. Agora, com provas, ela poderia agir.

Ponderou se devia pedir o divórcio. Nem ele, nem os filhos, nem as famílias dos dois gostariam disso. E também extinguiria o valor de tudo que ela vinha fazendo nos últimos meses para manter a família. Mas também não queria continuar com ele, um homem que enganava, escondia dinheiro da esposa, tirava dos filhos para gastar com prostitutas. Mas ela mesma era uma prostituta agora, o pior era ele se fingir de coitado e esconder dinheiro enquanto ela abria as pernas e deixava que homens a usassem para compensar a falta deste mesmo dinheiro na casa. Dinheiro. A palavra soava pesada, mesmo que não dita. Dinheiro. Dinheiro. Dinheiro. Arrependia-se de tudo que fizera por dinheiro. Será que, em outro mundo, ela teria simplesmente permitido que o marido se encontrasse com prostitutas de vez em quando se ele tivesse aberto o jogo desde o início? É claro que não. Nem mesmo agora que era uma delas. As pessoas sempre acham que carência afetiva e carência sexual devem ser supridas pela mesma pessoa, com exclusividade de direitos. Mas eventualmente essa premissa cai por terra quando os dois lados deixam de estar satisfeitos na relação, e com o tempo, muitas vezes não sobra nem amor nem sexo, só o contrato de exclusividade. Talvez ela ainda suprisse a carência afetiva de Renan, mas a carência sexual era das prostituas. Outras prostitutas. Enquanto ambas as carências de Sofia estavam nas mãos de Bernardo. Por que continuar casada então?

Depois de passar o dia todo pensando no futuro, cochilando de vez em quando, sonhando com dinheiro, com os filhos, com o marido e com Bernardo, com meias-calças abertas entre as pernas, com maquiagens e esmaltes, roupas curtas e perfumes fortes, Sofia se levantou para trabalhar no fim do dia. Deixou uma carta na gaveta de cuecas do marido, com os três holerites mais recentes, a carta dizia “vamos nos separar”, com um ponto final claríssimo, não era uma briga, não era uma DR, não era um pedido. Era o fim, que não permitia duplos sentidos de interpretação, não dava margem para “sim” ou “não”. Mas na verdade ela nem pensou muito, só chegou à conclusão de que queria se separar e colocou sua vontade em prática. Não pensou que isso envolveria advogados, não pensou que no processo teria de explicar de onde vem sua renda e não pensou em qual seria a reação do marido.

É claro que ele não aceitou isso assim numa boa quando chegou em casa lá pelas dez da noite. Quem aceita um divórcio de primeira? Renan tomou uma dose de uísque para se acalmar. Agir impulsivamente nunca fizera seu estilo, não porque não sentisse raiva, porque sentia, e muita, mas era frio o suficiente para conter suas emoções e usá-las da melhor forma possível. Além disso, acabava passando para os outros a imagem de um cara bondoso, paciente e tolerante. Renan tomou mais uma dose de tranquilidade, entrou no carro e dirigiu até o hospital onde supostamente Sofia trabalhava. O plano era forças a esposa a falar com ele durante o expediente, porque assim ele tinha chance de fazê-la dizer exatamente o que se passava em sua cabeça, na pressa de voltar ao trabalho.

Na recepção do hospital, disse que se chamava Renan, que era marido da enfermeira Sofia Rodrigues e que precisava falar com ela. A recepcionista, nova no cargo, ligou para o ramal da central das enfermeiras, e a chefe da enfermagem atendeu. A enfermeira-chefe, que não tinha tempo a perder, disparou na lata “faz meses que a Sofia não trabalha mais aqui”. A recepcionista repetiu isso. Discutiram por alguns instantes, Renan crente que a menina estava errada, mas ela lhe assegurou que, meses atrás, Sofia fora demitida. Já de volta ao estacionamento, Renan percebeu que o carro da mulher não estava ali junto aos outros nas vagas reservadas para os funcionários. E pela segunda vez no mesmo dia, Renan lutava contra a raiva. A mesma raiva que Sofia sentira na noite anterior, a sensação de ser enganado por alguém em quem se confia.

Renan voltou para casa e bebeu, e então montou um plano. Era fato que sua esposa estava trabalhando, já que o dinheiro que sustentava a família chegava todo mês, ela saía toda noite para trabalhar, e voltava pela manhã. Quando Sofia chegou em casa, o marido já havia saído, os filhos já estavam na escola, como sempre, e na mesa da cozinha estava a carta de divórcio que deixara para o marido, com uma faca das grandes cravada bem no meio, mas Sofia não deu muita importância para aquilo, não se importava mais com os sentimentos do marido. Dormiu o dia inteiro, sem qualquer peso na consciência. E Renan entrou em casa enquanto ela dormia, pegou a faca na cozinha e foi até o quarto. Sofia ainda dormia, o marido caminhou até a cama e por longos minutos, inexpressivo, apenas a observou, contando sua respiração. Deixou que a mão direita pairasse sobre o rosto dela, e levantou a faca com a mão esquerda. O desejo de acabar com a vida da esposa, uma facada de cada vez, queimava-lhe a alma, mas resistiu. Isso só lhe traria problemas, e também não lhe daria o gosto de ver Sofia amargando a derrota, após ter seus segredos expostos. Saiu de casa levando a faca e voltou ao plano original.

Renan faltou ao trabalho, ficou de tocaia em frente à casa e seguiu Sofia quando ela saiu para trabalhar, e assim chegou à mesma boate onde estivera duas noites atrás. A hipótese da mulher ter virado prostituta era absurda, mas, não sendo impossível, e amarrando todas as pontas soltas, só poderia ser isso. Deixou o carro na rua e subiu até a boate, onde fez questão de procurar Sofia. Encontrou-a respondendo pelo nome de Wisdom e falando em inglês. Tocou seu ombro e ela se virou.

Sofia, surpresa, encarou o marido. Seus olhos refletiam as luzes vermelhas da boate e sua boca permanecia entreaberta, sem saber o que fazer. Renan não desviava os olhos pequenos de sua mulher, nem sequer piscava. Suas sobrancelhas enraiveciam o rosto, mordia os lábio e sentia os jovens pelos minúsculos da barba por fazer espetarem uns aos outros. Abriu rapidamente a boca, apenas o mínimo suficiente para cuspir no rosto de Sofia, antes de sair correndo.

Sem reação, com saliva escorrendo pelo lado do nariz, a prostituta foi socorrida por uma colega e levada para dentro do bar. Recobrando a consciência, furiosa, temerosa e humilhada. Sofia ligou para Bernardo, contou o que seu marido fizera. Bernardo conversou com ela e a acalmou, depois disse que a amava como há muito tempo não amava ninguém. Ela confessou que também o amava e os dois riram um pouco, não conseguindo conter o alívio que os sentimentos revelados lhes causavam. Mais calma, Sofia se despediu de Bernardo e pediu que ele aparecesse para fazerem amor, e riram mais um pouco quando ela usou a expressão. E ele prometeu vir assim que pudesse e disse que estava ansioso para beijá-la.


Renan voltou o mais rápido que pôde para casa, com os pensamentos borbulhando em sua mente em espirais que subiam e desciam pelos mesmos temas, como raptar os filhos, contar o segredo da esposa aos pais dela, e em várias maneiras de matá-la que jamais colocaria em prática. Mas quando estava chegando em casa, um motoqueiro parou ao lado de seu carro, apontou-lhe uma arma e mandou que entregasse a carteira. Renan obedeceu, e o homem disparou duas vezes contra seu peito antes de arrancar com a moto. Renan sangrou até morrer sentado no carro. A polícia trabalha com a hipótese do latrocínio. Sofia nunca mais viu Bernardo, recebeu o seguro de vida do marido e parou de trabalhar.

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Decreto

Você já ouviu a música das folhas secas no quintal? É aquele som que as folhas fazem raspando no piso enquanto são jogadas pelo vento da madrugada. Posso dizer que a música das folhas secas no quintal é estranhamente bonita e significativa quando você está triste. E também posso dizer que você vê significados estúpidos em qualquer merda quando está triste. Eu odeio isso que sinto, odeio gostar de você e não me apaixonar, odeio você estar longe e odeio ter que terminar, mas eu o fiz antes que as coisas piorassem. Rachei o seu pobre coração em dois, antes que isso se tornasse tão grande que quando finalmente acabasse o racharia em mil. Você diz que não quer mais pensar em amor, que cansou de quebrar a cara, mas eu sei que você vai superar. Um dia vai achar alguém que se apaixone por você como eu não pude, alguém cujo maior desejo seja se casar e passar o resto da vida com você, assim como você quis comigo e eu não quis. Eu tentei. Eu tentei. E às vezes bate o arrependimento, o sentimento de que na verdade eu deveria continuar tentando, até eventualmente conseguir. Por outro lado, agora eu sei o que a minha primeira sentiu quando me dispensou. Ela também gostava de mim, mas não era apaixonada. Os cantores não fazem músicas sobre quem não ama, sobre quem parte os pobres corações daqueles que amam, mas mesmo nós sentimos dor. A dor do carrasco. E devemos aguentá-la sozinhos e em silêncio, na madrugada, cortada apenas pela música das folhas secas no quintal, e por estalos da geladeira de vez em quando. Sim, eu te deixei, eu não queria ter de te deixar, mas eu tinha, então engoli o choro, respirei fundo e enfiei minha faca no seu coração. Eu te ouvi sangrar, cheio de arrependimento. Nunca deveria ter começado, deveria ter deixado eternamente no ar o amor platônico impedido de se realizar pelos mil e seiscentos quilômetros que nos empurravam para longe um do outro. Assim teríamos para sempre aquela lembrança bonita do que poderia ter acontecido e nosso amor jamais seria maculado pelas lágrimas da solidão, do remorso e da decepção. Ao menos se você me odiasse, se me amaldiçoasse com setecentas mil pragas, se espalhasse para o mundo o quanto eu fui um canalha enganador e cruel, então eu poderia viver com isso, aceitando meu castigo. Mas não, você me diz o quanto foi feliz comigo, diz que vai aceitar, diz que tudo que vivemos foi lindo e que sempre vai se lembrar. Como eu posso dormir sabendo que destruí o coração e os sonhos de uma garota tão incrível. Eu errei, mas errei em ter começado, agora tive de cortar pela raiz e ninguém gosta de fazer isso. Eu queria muito poder diminuir a sua dor , eu queria poder avançar o tempo até o ponto no futuro em que tudo isso ficou no passado, você se apaixonou de novo e ele se apaixonou por você, nós somos amigos e esquecemos o quanto esse momento do presente é doloroso. Eu queria ter me apaixonado, eu tentei me apaixonar, mas a gente não controla o que sente. Por isso tanta gente ama uns completos imbecis. Como você amou este completo imbecil, que mandou embora a melhor, mais companheira e mais valiosa namorada que já teve, e que nunca terá outra igual. Agora, que faço eu da vida sem você? Eu me forcei a te perder, eu me convenci a não querer e não querendo eu vou tentando superar. É por isso que ninguém faz música para quebradores de corações, porque elas ficam umas belas porcarias. Me apego à ideia de que fiz a coisa certa, de que eu não te amava o suficiente, e que por isso estávamos fadados a acabar, e por isso quanto mais demorasse mais dolorido seria e por isso eu deveria fazê-lo o quanto antes. Já contei essa história tantas vezes que sei a ordem dos fatores de cor. Pelo menos somos jovens, vamos superar, e no futuro essa será apenas mais uma pálida cicatriz esquecida na pele imaginária de nossos corações. Quando eu me apaixonar de novo, se é que um dia isso vai acontecer, quero que ela seja como você, e que não faça comigo o que no fim eu fiz com você. Mas se fizer, eu vou superar, vou me levantar e seguir em frente até me apaixonar de novo. E de novo. E de novo. E quantas vezes eu puder até morrer. Porque isso você me ensinou: nada é mais perfeito do que se apaixonar, nada é maior e mais surpreendente do que o amor verdadeiro. É claro que você já sabia disso, mas espero que eu não a tenha feito se esquecer.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Ode a uma cadela

Enquanto caminhava da estação de trem de volta para casa, eu vi a lua cheia, brilhante, cercada de nuvens cinzentas. Pensei nos lobisomens, que, segundo as lendas mais tradicionais, não poderiam conter uma transformação ante essa visão, ainda que tão pálida sob o manto poluído da grande São Paulo. Depois pensei em Bear Grylls, um especialista em sobrevivência da TV, cuja técnica para descobrir se há lobos num ambiente selvagem é uivar para o alto e ver se eles respondem. E depois pensei em Duquesa.

Duquesa era uma cadela vira-latas, com algo de pastor alemão nos genes, que, quando foi adotada por minha família, no final de mil novecentos e noventa e oito, parecia um bicho de pelúcia de tão surreal que era sua aparência. Um animal pequeno, tímido e frágil, com cara tristonha de quem tem medo do que possam fazer consigo nesse lugar esquisito, com essas pessoas grandes e babonas que lhe cercam e alisam e apertam o tempo todo.

Nos dias seguintes, a tristeza e a timidez sumiram rapidamente e Duquesa virou uma cadela bagunceira e alegre, daquelas que têm medo, mas não vergonha. Tinha energia e força de sobra, arrastava-me pelas calçadas e frequentemente escapava da coleira quando eu a levava para dar umas voltas a pé pelo bairro. Enquanto outros cães gostam de bolinhas que lhes cabem nas bocas, ela brincava com minha bola de basquete, e acabou furando e depois rasgando a gorduchinha. Mas eu e minha irmã brincávamos com a cadela e o trapo rasgado de basquete assim mesmo, atirando a ex-esfera de um para o outro enquanto a bobinha Duquesa tentava pegá-la no ar.

Para Duquesa, tudo era brinquedo. Principalmente minhas meias e meus tênis que ela adorava morder – enquanto ainda estavam revestindo meus pés, diga-se de passagem. Sua pequena casa de madeira, com uma tira de papel colada sobre a entrada onde se lia seu nobre nome, ficava na garagem, mas ela gostava mesmo era de ficar dentro de casa, um território que, a não ser que um adulto a liberasse, lhe era proibido. Por isso eu tinha de abrir a porta com cuidado quando entrava, mas ela sempre se metia por entre minhas pernas e qualquer vãozinho da porta. Ainda filhotes, eu tinha medo de machucá-la fechando a porta ou pisando sobre alguma de suas fofas patas, e a danada acabava entrando. Levei algumas broncas por isso, porque ela sempre usava a casa como banheiro assim que corria para dentro.

Quando meus pais se separaram, Duquesa foi morar com meu pai. Na verdade, foi morar no escritório, porque nos primeiros tempos ele morava num apartamento e não havia como criá-la ali. Mas ela fazia companhia para o pessoal do trabalho, e mesmo para meu pai ou sua segunda esposa, que trabalhava com ele, quando algum deles ficava até mais tarde sozinho no escritório.

Depois do novo casamento, quando meu pai e minha madrasta se mudaram para uma casa, Duquesa foi com eles, e logo ganhou um novo companheiro, de nome Pascoal, cocker dourado com um moicano no alto da cabeça. Aliás, o alto da cabeça de Duquesa era engraçado, pois sempre houvera ali uma espécie de galo, deixando sua cabeça parecido com a de Pluto, melhor amigo de Mickey Mouse. Aliás, novamente, uma cadela também pode ser a melhor amiga do homem, ou do menino, no meu caso, quando tinha Duquesa por minha confidente e lhe sussurrava ao ouvido os nomes de garotas por quem eu achava estar apaixonado.

E já que se falou em amor, Duquesa e Pascoal acabaram ficando juntos, como é inevitável para dois cães tão bem apessoados sob o mesmo teto (ou quase, já que dormiam em casinhas separadas), e em duas ninhadas tiveram impressionantes doze filhotes. Doze. E estes foram doados a outras crianças, que eu esperava que amassem seus cãezinhos assim como eu amava os meus, e como eles se amavam. Duquesa e Pascoal passaram anos um ao lado do outro, envelhecendo juntos como um casal de namorados abençoado pelo destino.

Vieram os problemas da idade, é claro. Ele teve glaucoma, e problemas nos ouvidos, ela teve dificuldades com os pelos e, recentemente, enquanto ela se aproximava dos dezesseis anos (o que dá quase cento e doze em idade de cachorro, se não me engano), uma insuficiência renal que por fim acabaria levando-a à morte. Duquesa faleceu hoje, dezessete de fevereiro, depois de uma noite sendo medicada com dipirona, para que não sentisse dor, e sentindo, pouco a pouco, o fio da foice do ceifador a se aproximar de sua pele.

Eu não estou triste por ela, porque sem a menor sombra de dúvida era uma boa cadela e, se existir algo como um paraíso canino, com certeza ela foi para lá. Não estou triste por mim, porque sei que aproveitei com ela a juventude, e, mesmo nos encontrando pouco nos últimos tempos, éramos como velhos companheiros, saudosos de tempos passados em que dividíamos aventuras, um tempo em que éramos menos adultos e menos preguiçosos. E também menos mortos. Eu estou triste pelo mundo, que perdeu hoje um ser que jamais lhe fez mal, que só tinha bondade e pureza a lhe acrescentar.


Por isso, quando vi a lua, eu me lembrei da Duquesa, e pensei nela, e olhei para a lua por um tempo, vendo as nuvens passarem, e então uivei para o alto, com toda a força e todo o ar que pude juntar, até ouvir meu próprio uivo voltar ecoado da parede do galpão industrial ao meu lado. E pensei “Duquesa, onde quer que você esteja, se puder me ouvir, isso foi pra você. Descanse em paz, porque você merece, e obrigado por tudo.”

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Menina da Cidade


A menina da cidade precisa estudar, tem que arranjar emprego, vai fazer ENEM e vestibular. Um rosto de marfim não transparece, e os passos de passarela não esmorecem fácil, mas tudo isso pesa sobre os ombros, ainda que ela mantenha os olhos no horizonte.


Mas no Piauí é diferente. Tudo é família, festa e forró. Anda de moto e deita na estrada, vai buscar água. Vê o Sol nascer. Vê o Sol se pôr. Coisas que não dá pra ver direito com esse monte de prédios de São Paulo. A Lua é maior, o firmamento é mais brilhante. Longe da cidade, tudo cheira à vida.


Com os pés submersos na bacia, nua, ela se banha no início da noite. À céu aberto, com apenas as estrelas por testemunhas de sua beleza revelada. Deslizando as mãos ensaboadas pelo próprio corpo, ela encara as estrelas de volta e pensa que não haveria tanta violência, tanto estresse e tantos problemas no mundo se mais pessoas vissem o que ela vê nesse momento.

segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Black Bloc



*Esta é uma obra de ficção, quaisquer semelhanças com pessoas, entidades, locais e eventos reais são mera coincidência, bitch*

Beatriz assistia assustada, ainda com dez anos de idade, enquanto sua mãe a puxava pela mão e se afastavam pela calçada da Avenida Paulista. De repente ouviu o cras característico de vidro sendo estilhaçado. A loja do McDonalds onde há pouco estivera comendo com a mãe estava sendo destruída à marretadas por um grupo de pessoas vestidas de preto, com capuzes e lenços no rosto. Era vinte de abril de dois mil e um, e os adeptos do Black Bloc faziam sua primeira aparição pública no Brasil, protestando, a seu modo agressivo, chocante e profundamente simbólico contra a aprovação da Área de Livre Comércio das Américas, uma política internacional amplamente criticada. Os manifestantes não machucaram ou sequer ameaçaram os clientes do restaurante, apenas destruíram sua fachada.

Outras fachadas de grandes lojas franquiadas multinacionais, e também agências bancárias, foram quebradas naquele dia, e Beatriz assistiu a boa parte das ações, enquanto a mãe tentava mantê-las longe da bagunça e em segurança até chegarem ao Metrô. Aquelas cenas jamais saíram da cabeça da menina, que desde pequena era acusada pelos pais e familiares por “pensar demais” e “nunca ficar feliz com nada”. Principalmente uma das figuras de preto, que brandia vigorosamente a pesada marreta de cabo longo contra a vidraça do McDonald’s. Apesar do rosto coberto, as curvas sob as roupas pretas e o tom característico de sua voz a bradar evidenciavam uma mulher. Para Beatriz, aquela era uma mulher que homem nenhum ousaria tentar intimidar ou agredir, e ela queria ser assim quando crescesse.

Com o tempo, descobriu o que era ser um Black Bloc e a ideologia anarquista e atuante da tática de protesto lhe caiu como uma luva. Até tentara sair como Black Bloc em pequenos protestos às vezes, mas normalmente acabava sozinha, e a força desta estratégia única de manifestação está justamente no coletivo, na massa de pessoas não identificáveis que ousavam pôr-se, com a cara coberta e a coragem evidente, entre os manifestantes comuns, pacíficos e a polícia repressora.

Mas em junho de dois mil e treze, prefeitos de várias cidades do Brasil optaram por aprovar um controverso aumento no valor das passagens de ônibus, trens e metrôs. Logo depois disso, nas grandes cidades, começaram algumas passeatas e ocupações de vias públicas em protesto contra os novos preços. O número de manifestações foi aumentando, e também a quantidade de cidades atingidas. Logo não eram mais apenas pequenos grupos, mas enormes multidões, e os vinte centavos acrescidos nas passagens eram só a gota d’água para toda uma miríade de insatisfações dos brasileiros contra sua administração pública. Algumas vezes, na Avenida Paulista, os protestos chegaram a contar com centenas de milhares de pessoas.

E no meio deles estavam os Black Blocs, que, vez ou outra, chegavam a ser cem ou duzentos. Parece pouco, mas uma vanguarda de cem ou duzentas pessoas de preto, encarando as tropas de choque das polícias pelo país inteiro conseguiam motivar outros participantes e até combater efetivamente a polícia, para minimizar os danos causados por ela nos manifestantes “civis”. No dia dez de junho, aconteceu um dos primeiros grandes protestos na Avenida Paulista, que foi fortemente reprimido pelo choque. Até na Alameda Santos, quem estava dentro da Livraria Cultura do Conjunto Nacional podia ver pelas grandes vidraças uma falange de policiais bem equipados investindo em linha contra os manifestantes. Lá no meio, de moletom preto, mochila nas costas, capuz e um lenço encharcado de vinagre sobre o nariz e a boca, Beatriz atingia o escudo de um policial com um pedaço de corrimão, tirado de uma das escadarias das estações de Metrô próximas, enquanto outros companheiros Black Blocs pichavam paredes, quebravam vidros e arremessavam pedras.

Da calçada, tentando encontrar esconderijos de onde pudesse sair ileso e ao mesmo tempo tirar algumas boas fotos, e talvez conseguir uma narrativa descente do que estava acontecendo, Tiago, um jornalista, viu quando Beatriz, já desvencilhada daquele policial, chutou de volta, gritando, uma bomba de gás lacrimogêneo que outro militar havia atirado. Parou no meio do movimento de agachar-se atrás de uma grande lixeira de concreto, encantado pela visão que teve de Beatriz. Ela era baixa, um metro e sessenta talvez, tinha seios pequenos que não faziam tanto volume no moletom preto, era um pouco gordinha e dona de um largo e bonito quadril, no topo de coxas e pernas bem delineadas. Brandia um cilindro de metal com a ponta quebrada que ele não sabia de onde era, e algumas mechas de cabelo ruivo escapavam do capuz e do lenço. Tiago só voltou à realidade quando uma bala de borracha jogou-o no chão ao acertar seu ombro quase que de raspão. Praguejando, ficou atrás da lixeira e tentou tirar uma foto de sua nova musa de preto, mas ela já havia corrido para longe.

No dia seguinte, quando chegou à redação, tentou escrever sobre o que tinha visto na noite anterior, mas nada lhe vinha à cabeça – a não ser Beatriz. Nem sabia o nome dela, mas sabia que jamais uma mulher havia o impressionado tanto, era muita fúria, muita coragem, muita ferocidade, algo que quase não condizia com as generosas curvas de seu corpo feminino. Imaginava-se lutando lado a lado com aquela mulher, como Will e Elizabeth em Piratas do Caribe. Sem conseguir resistir por mais tempo, escreveu uma curta matéria sobre a guerreira de preto, colocando no meio do texto algumas outras informações e reflexões sobre o momento que viviam. É claro que seu editor detestou o texto. Depois de um ano de estágio, após um concorridíssimo processo seletivo, Tiago finalmente fora efetivado na equipe da revista Veja, um sonho que alimentava há muito tempo.

Porém, agora esse sonho não parecia significar mais nada. Depois do fim de semana abandonou a Editora Abril e passou a se dedicar a cobrir, independentemente, a onda de protestos que acontecia em São Paulo, sua ideia era manter um tipo de “blog dos protestos”, e talvez escrever um livro-reportagem quando tudo acabasse. Mas no fim das contas isso era só uma desculpa para ir atrás de Beatriz, que ele passou a procurar em todos os protestos, fotografar e registrar as ações para contar em seus textos depois. Tiago se tornara obcecado por ela, mas não tinha coragem de ir falar diretamente com sua paixão platônica.

Depois que a maioria das prefeituras revogou o aumento das passagens o contingente dos protestos diminuiu consideravelmente, mas ainda assim muitos iam para as ruas, incluindo Beatriz e os Black Blocs. Sem liderança oficial, com as datas e locais de suas ações combinados e divulgados na internet, os homens e mulheres de preto mantinham sua resistência, seja em interdições na Avenida Paulista ou acampamentos no Congresso Nacional e em frente à residência do Governador do Rio de Janeiro. Os Black Blocs continuaram atuando, arautos da anarquia e da insatisfação pública. Rotulados como “vândalos violentos” pela mídia, e toda sorte de adjetivos depreciativos como “arruaceiros”, “baderneiros” e alguns até foram presos por formação de quadrilha armada – um crime inafiançável.

Quase três meses depois de os protestos começarem, chegou o Dia da Independência, sete de setembro, e desde cedo os Black Blocs, entre outros manifestantes, já se concentravam no vão livre do MASP. Claro que Beatriz estava lá, ela adorava a ação das manifestações, sentia-se viva e livre, lutando, com as próprias mãos, por um país melhor. Tiago continuava seguindo a garota, ainda tirando fotos, sem saber o que fazer para falar com ela. Como um homem normal e medroso como ele poderia tomar a iniciativa de puxar conversa com uma mulher tão forte e imponente? Mas ainda assim não conseguia se afastar dela, era atraído por seus olhos castanhos de caçadora, com sobrancelhas crispadas, pelo fogo de seus cabelos, como se o próprio ardor de seus ideais escapasse de sua mente.

No sete de setembro, as manifestações já eram esperadas, e as autoridades mandaram duzentos e cinquenta policiais militares para a Avenida Paulista. Isso não intimidou os Black Blocs, de maneira alguma, e assim que a polícia tentou conter o avanço dos manifestantes pela Avenida, lá estavam os anarquistas de preto, novamente à frente de todos, com armas e projéteis improvisados, confrontando os escudos de ferro, cassetetes e balas de borracha. Após o primeiro choque, Tiago se esforçou para manter a mira de sua câmera em Beatriz, mesmo quando as fileiras de negro se quebraram contra as da polícia. E assim permanecia em seus cantos semiprotegidos, acompanhando a história enquanto era feita, pelas belas mãos e pernas de uma mulher.

Mas desta vez haviam muitos policiais. Pelo menos um para cada Black Bloc, e logo os anarquistas estavam perdendo, tendo de fugir e constantemente se reagrupar uns aos outro para não serem completamente subjugados. Beatriz foi atingida por um cassetete e teve de se apoiar em um joelho para não cair, mas quando o policia que a acertara investiu novamente ela o surpreendeu com um soco no rosto, o policial caiu no asfalto ,cassetete e capacete se soltaram e rolaram pela avenida. Para reagir depressa, antes que Beatriz lhe atingisse de novo, sacou do da cintura um revólver que deveria estar carregado com balas de borracha como os de seus companheiros, mas quando o tiro atingiu a Black Bloc no peito, ela não caiu para trás como o repórter caíra na noite em que a viu pela primeira vez. A bala entrou em seu peito, e um filete de sangue escapou por sobre o moletom enquanto ela desmontava sobre os joelhos, e por fim caía de bruços no chão. Enquanto o policial, ainda em frenesi, mantinha o revólver apontado para o nada.

Tiago assistiu a tudo, incrédulo. Quando viu o homem atirar não se conteve mais, gritou e saiu correndo por entre a batalha que ainda se desenrolava. Segurando a pesada câmera pela correia de segurança, atingiu com ela a cabeça do policial assassino, e ele caiu a seu lado quando a câmera se estraçalhou no impacto. Depressa, se atirou por sobre Beatriz e virou-a de barriga para cima, seus olhos castanhos estavam abertos e vazios, com um deles inchado devido ao golpe, uma poça de sangue já se formava embaixo de seu corpo e algumas pessoas, de ambos os lados, já paravam as agressões ao perceber que a menina estava morta.


Chorando, Tiago tirou o lenço do rosto dela, e pela primeira vez viu seu nariz e sua boca, que estava suja de sangue. Seu nariz era fino e delicado, condizente com a boca pequena e cor-de-rosa, com uma pinta sobre o lábio superior, do lado esquerdo. Ele a abraçou, tentando ouvir ou sentir respiração, mas não havia mais vida nela. Delicadamente, fechou suas pálpebras e afagou seu rosto inchado. Sentindo um imenso remorso e arrependimento por não ter sequer tentado conhecê-la quando podia, segurou o lenço dela com as duas mãos, dobrando o na diagonal, depois cobriu com ele o próprio rosto e tossiu quando o cheiro do vinagre invadiu suas narinas. Levantou, colocando o próprio capuz por sobre a cabeça. Os policiais aproveitavam a breve hesitação perante a fatalidade para imobilizar alguns dos manifestantes. Imbuído de uma nova coragem e uma ira mais extensa que toda a Avenida onde guerreavam, agarrou o cassetete no chão e investiu, aos gritos, contra os soldados.

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Ser alguém

Miguel pagava meia entrada no trem, no ônibus, no metrô e até no cinema... mas não sobrava muito tempo, ou dinheiro, para ir ao cinema. Ele trabalhava numa pet shop, dando banho e tosando cães de segunda a sábado, mas à noite estudava Direito – o que demandava quase todo o seu curto salário, e praticamente todo o pique.

Auxiliar de limpeza no shopping, dona Marta, a mãe de Miguel, teve três filhas depois dele, duas gêmeas três anos mais novas e a caçula dois anos depois das gêmeas. O pai, Sr. León, italiano, era dono de um velho e empoeirado boteco, frequentado basicamente por aposentados, onde as meninas eram proibidas de entrar, assim sobrava para Miguel ajudar o pai nos fins de semana.

O sono de Miguel era parco e picado, dividido entre sua cama e as sete conduções que pegava todos os dias. Às vezes dormia mesmo em pé no trem, mas essa “mordomia” acabava quando começavam as temporadas de provas. Comia mal, a não ser quando sobrava janta para a marmita do almoço, nestes dias devorava a refeição com gosto, mas em geral se resignava a um pão de queijo ou uma coxinha. Depois só ia comer de novo quando chegava em casa, tarde da noite. De vez em quando, nos dias seguintes ao pagamento do salário, comia algo na faculdade, pão de queijo se tivesse comido coxinha no almoço e vice-versa.

Não tinha namorada. Ficava com uma ou outra garota na faculdade, nas poucas escapadelas que dava até o bar vizinho e por alguns meses flertou com uma menina que estudava teatro e sempre levava seu casal de shitsus à pet shop, mas não deu muito certo quando saíram juntos e a loja ainda acabou perdendo a cliente.

Suas maiores fontes de diversão eram o videogame, já ultrapassado, mas com uma vasta gama de baratos jogos piratas à sua disposição, e o futebol aos domingos de manhã com os amigos do bairro. Nesses dias, vira e mexe sentia inveja daqueles que não faziam faculdade e apenas trabalhavam, que sem ter de pagar anos e anos de estudos caros, compravam roupas, alguns até carros, e saíam com garotas nas noites de sexta e sábado.

No finalzinho do terceiro ano arranjou um estágio, e então teve de comprar algumas camisas, calças, gravatas, meias, sapatos e até um paletó. As roupas não caíam lá muito bem, porque ele era alto, com um metro e oitenta, e também um pouco gordo, mas eram tudo o que podia pagar. Começou a pegar muito mais conduções todos os dias, visitando fóruns, cartórios e prefeituras pela cidade de São Paulo e as muitas outras que a cercavam, e continuava dando banho em cachorros aos sábados porque o estágio pagava muito mal.

Ainda assim adorava seu novo emprego, adorava analisar processos, aprender as estratégias dos advogados mais experientes. Ficava sonhando com o dia em que ele mesmo faria parte disso, tirando dinheiro de empresas que supostamente exploravam funcionários e eventualmente até livrando alguém de ir para a cadeia. Seus pais não gostavam quando ele contava os casos de criminosos que estudava, mas não conseguia resistir. Nada era tão emocionante como o Direito Criminal. A cereja do bolo eram os olhares femininos, que aumentaram consideravelmente quando ele começou a andar de terno e gravata.

Com muita dedicação terminou a faculdade, nos cinco anos esperados, sem carrear dependências, passando por uma meia dúzia de exames finais. Foi efetivado no escritório no final do quinto ano, antes mesmo de passar no exame da Ordem, e elogiado pelo chefão na frente de todo mundo, quando anunciaram sua promoção bem alto, para que todos no andar ouvissem. Naquele dia matou aula e foi tomar uma cerveja com os colegas, já que era sexta-feira, e lá encontraram um grupo de estudantes de pedagogia de uma faculdade próxima. Miguel conheceu Amanda. A meiga, tímida e linda Amanda, com quem começou a namorar.

A primeira fase da prova da OAB foi difícil, mas ele passou, logo no começo do ano, e em abril já fazia um curso preparatório para a segunda fase. Numa quarta-feira, não foi à aula, saiu mais cedo do trabalho e foi para casa tomar banho e se arrumar e pouco depois juntou os pais, as irmãs e a namorada para sua colação de grau, o tão sonhado momento em que pegaria seu diploma. As gêmeas, que já tinham vinte anos, estavam lindas em seus vestidos (que não eram iguais). Miguel deixou a família nas cadeiras para a plateia, deu um beijo de leve na namorada, para não lhe borrar o batom, e foi ao encontro dos colegas de sala.

Na fila, seus colegas trocavam histórias, contando o que lhes tinha acontecido nestes últimos meses depois da faculdade e relembrando casos engraçados dos cinco anos que passaram juntos. Estavam todos muito animados, tirando fotos com seus celulares para o Facebook e o Instagram, mas guardaram os aparelhos quando atravessaram o salão e se sentaram nas cadeiras do grande palco, sob uma salva de palmas. Dona Marta tinha os olhos marejados e Amanda não conseguia parar de sorrir. O Sr. León gritava e agitava os braços, feliz como nunca pelo primeiro de seus filhos que se formava na universidade.

A oradora da turma era aquela menina mais popular da sala, amiga de todas as panelinhas, e não á toa, seu carisma no discurso levou muitos às lágrimas, tanto entre os formandos quanto no público. E depois o rapaz que tinha as melhores notas foi até a frente do palco e leu o juramento, que os outros ecoaram em uníssono, até que finalmente chegou o momento da entrega dos diplomas e foram, exultantes, formar fila na borda do palco. Miguel tinha um sorriso larguíssimo no rosto. Finalmente iria receber seu diploma, logo mais passaria na OAB e estava apaixonado pela doce e atenciosa Amanda, que o olhava orgulhosa ao lado da irmã caçula. Miguel conseguira guardar algum dinheiro durante aqueles longos anos de muito trabalho e estudo, quase sem sair de casa, e talvez, com mais dois ou três anos, teria o suficiente para abrir seu próprio escritório. Seu coração batia rápido de ansiedade com toda a expectativa da vida de sucesso que teria pela frente.


Quando o locutor chamou seu nome, deu o primeiro passo em direção ao professor que segurava o canudo simbólico e depois não ouviu mais nada. Seu coração parou e Miguel caiu sobre os joelhos, para despencar do palco logo em seguida, enquanto o fotógrafo disparava flashes em sua direção. Estava morto.