Sofia era a enfermeira mais alta do hospital,
que nos anos oitenta e noventa era um dos lugares que mais faziam partos em
todo o ABC paulista, mas hoje em dia é só um hospital particular comum. Ela
tinha um e oitenta e seis de altura, e ainda usava salto alto quase todos os
dias, ficando assim com mais de um e noventa. De vez em quando, suas colegas de
menor altitude pediam que pegasse coisas nas portas e prateleiras mais altas
dos armários. Ela fazia estes favores de muito bom grado, adorava ser alta, e
adorava que as pessoas se impressionassem com sua altura.
Normalmente ela trabalhava à noite, porque
não tinha problemas com o sono e gostava de ganhar o adicional noturno. E foi
quando ela estava trabalhando à noite que um antigo amigo à viu de longe e veio
lhe cumprimentar. Ela não estava muito bem naquele dia. Apesar de normalmente
ser uma pessoa simpática e bem humorada, esse comportamento vinha mudando nas
últimas semanas, desde aquele dia.
Naquele dia estava garoando forte, e mais
cedo havia chovido bastante. Na grande São Paulo, chuva sempre resulta em duas
coisas: engarrafamentos e acidentes – e acidentes geram trabalho para médicos,
enfermeiros e toda a equipe do hospital. Pelo menos uns quatro acidentes na
mesma noite, uma meia dúzia de vítimas. Ossos quebrados, sangue, cortes a
suturar. Por isso Sofia não percebeu quando pegou a bolsa errada. Normalmente
as enfermeiras tinham dificuldade de identificar os produtos no alto, mas com
ela era sempre terrível pegar o soro, que ficava lá em baixo no armário. E
naquela noite agitada, na pressa não conferiu o rótulo que dizia claramente
“vaselina”.
A vaselina entrou na veia de uma paciente,
uma menina, e Sofia a deixou ali, recebendo na circulação sanguínea o que
pensava ser soro. Mas a vaselina, essa antissocial, não se mistura com o sangue
e se aglomera em trombos, bolhas que entopem os vasos, muitas vezes nos pulmões.
E foi o que aconteceu, logo a menina começou a sentir falta de ar e a cuspir
sangue, a mãe chamou as enfermeiras, mas a vaselina já se acumulava no peito da
paciente. Debatendo-se, tentando em vão respirar, aos doze anos a menina
morreu.
O hospital rapidamente fez um acordo com a
família da menina morta e o caso não foi parar na imprensa, assim seu marido
não ficou sabendo de nada, nem seus filhos, nem seus pais. E ela foi
sumariamente demitida. Mas não conseguiu contar para o marido, ele sempre se
orgulhava dela ser enfermeira. “Minha mulher salva vidas, faz um trabalho de
Deus”, dizia sempre aos irmãos no culto de sábado. Chegou a sair de casa à
noite, logo após seu primeiro dia de desempregada, entrou num motel, sozinha, e
lá ficou, até terminar o horário que seria de seu expediente.
Sozinha, deitada na cama redonda, apenas com
uma luz vermelha parcial fracamente clareando o quarto, Sofia esticou o braço e
pegou o telefone em cima do criado mudo. Não sabia se era só esperar alguma
telefonista ou se tinha que discar alguma coisa, nunca estivera num motel
antes. Esperou até que caísse a linha, depois apertou o gancho e discou zero,
pediu uma batida de espumante com morango para a atendente, era o máximo que se
atreveria a pecar, mesmo naquela situação.
Enquanto esperava a bebida, notou alguns
controles colados na parede, ao lado da cama. Testando-os, descobriu que havia
luzes amarelas também, rádio, ar condicionado até, e algum daqueles botões
ligou o aparelho de televisão que ficava na parede em frente à cama. Jô Soares
entrevistava alguém que ela nunca vira, mexeu num outro botão e a imagem mudou
para um culto evangélico de outra igreja, uma que ela detestava. Mais alguns
canais acima e de repente foi surpreendida por uma mulher gemendo alto,
enquanto transava com um homem que mal aparecia na tela, a não ser pelo pênis.
Sofia ficou atônita. Suas pálpebras não
baixavam – e o queixo não subia. Nunca tinha visto aquilo assim, desse jeito
tão... tão... depravado. A câmera mergulhava em zoom para as partes íntimas
ligadas do casal, e depois passeava pelo corpo da loura maquiada, apenas para
voltar ao close dos sexos. Como essa mulher podia se dar a essa humilhação? Nem
por todo o dinheiro do mundo uma pessoa deveria vender sexo assim, era a mesma
coisa que se prostituir. Com certeza ela ia para o inferno...
Será que ia mesmo? Talvez ela só estivesse
fazendo aquilo por um bem maior, para ter dinheiro para cuidar dos filhos...
talvez até dos pais. Sofia se lembrou de um pastor europeu, que há muito tempo
viera visitar a igreja que ela frequentava. Naquela época, esse pastor disse
que Deus não enxergava o mal, apenas o bem, assim, talvez aquela mulher
escancarada e tendo as intimidades exploradas diante de uma câmera tivesse um
bom motivo para isso, uma boa intenção. E Deus certamente veria com bons olhos
o sacrifício dela, afinal, se exibir tão degradantemente assim deve ser
difícil.
Uma campainha tocou alta e Sofia se assustou,
desligou rápido, com vergonha de que alguém do outro lado tivesse escutado. Foi
até a porta e perguntou quem era. Silêncio. Então percebeu uma porta de alçapão
na parede, abriu-a, e lá estava seu coquetel. Era simples, prático e discreto,
achou aquela solução elegante e inteligente. Pegou a taça fina e comprida e se
sentou na cama, ligando a televisão de novo.
Passou as horas seguintes vendo filmes
pornográficos, reconhecendo, com certa vergonha, as coisas ali que já tinha
feito com o marido. Casara-se virgem, e ele também, a noite de núpcias fora
constrangedora e desajeitada, mas romântica ainda assim, e de lá para cá
aumentaram a confiança um no outro e aprenderam a explorar seus corpos. Já se
iam onze anos de casamento comprometido e companheiro.
O marido, Renan, vendedor, era gerente da
loja de sapatos onde trabalhava até três meses atrás, mas perdera o cargo para
que a dona da empresa desse emprego para seu novo namorado dez anos mais novo.
Assim, Sofia vinha sustentando a família quase sozinha e agora não tinha a
menor ideia do que iria fazer para continuar cumprindo a função de provedora
principal. E tinha que fazer algo rápido. Com esse monte de dúvidas rodando na
cabeça foi para casa de manhã.
Na noite seguinte, sexta-feira, saiu de casa
para trabalhar, como sempre, mas, sem querer ficar no motel de novo, e sem ter
o que fazer, ficou rodando de carro por aí, até parar na Avenida Paulista, há
dezenas de quilômetros de casa. Parou o carro numa rua adjacente e ficou
andando pelos arredores da larga via, vendo as casas grandes e ricas que
apareciam quando se descia no sentido dos Jardins.
Enquanto ela descia a rua, de saia até os
joelhos e blusa de mangas compridas, um carro parou a seu lado no meio fio, e
um homem, já de uns quarenta anos pelo menos, lá de dentro perguntou a ela
quanto era o programa. Horrorizada, começou uma discussão com o motorista, ele
ficou vermelho de vergonha, balbuciou algumas desculpas, disse que algumas
garotas de programa se vestiam discretamente, para homens com mais classe, e
assim que conseguiu arrancou e foi embora o mais rápido que pôde.
Sofia ficou perplexa, até voltou para casa
mais cedo. Como poderiam confundi-la com uma prostituta? Ela era uma cristã
fiel e comportada, não mostrava o corpo, mal olhava ou conversava com homens.
Mas mesmo assim alguém ainda achara que ela estava vendendo seu corpo, e ainda
se sentira atraído por ela... “homens com mais classe” dissera o homem
envergonhado, quanto será que uma mulher ganhava nesse ramo?
Não! Não queria nem pensar nisso! Onde já se
viu uma mulher decente pensando em quanto ganharia se fosse prostituta? O que
Deus iria pensar se a visse com esses pensamentos sujos? Se bem que... talvez
Deus não visse, e visse apenas as boas intenções dela, assim como devia fazer
com a atriz pornô... se ela conseguisse se manter longe de casa, tudo
escondido, sem levantar suspeitas...
Passou as noites do fim de semana em casa,
dormindo mal, preocupada com seu futuro e as consequências para sua família.
Não via alternativa, já que não iria contar a ninguém. O assassinato, ainda que
não proposital e cuja culpa lhe consumia, poderia acabar com o renome da
família em sociedade, e também com suas relações uns com os outros. Não
arranjaria outro emprego fácil, muito menos um que ganhasse tão bem quanto
antes, então decidiu, antes de se deitar com o marido na noite de domingo, que
a partir do pôr do Sol de segunda seria prostituta.
E que Deus a ajudasse, implorou.
Na noite de segunda-feira, arrumou-se o
melhor que pode, ainda sem se achar vulgar, colocou o jaleco na bolsa, para
disfarçar, e saiu para trabalhar. Estava muito nervosa, e nesse estado falava
em inglês como uma forma de refúgio, mesmo que sozinha, porque o outro idioma
criava um tipo de armadura psicológica entre ela e o mundo. E sacou daí mais um
detalhe de seu disfarce: fingiria ser americana, falaria só em inglês, talvez
isso até lhe trouxesse mais dinheiro. Seu nome de guerra? Wisdom.
A primeira noite foi difícil, claro. Teve de
fugir de um travesti que lhe acusou de ter roubado seu ponto. Correu o quanto
podia de salto alto e só por sorte não caiu. Parou em outra esquina, e
finalmente um carro parou para ela. Um senhor grisalho de camisa social e um
pouco gordo estava ao volante, combinaram um preço, em inglês, que ele falava
aos soquinhos, e ele a levou para o motel. Lá ela pediu uma dose dupla de
uísque, que virou de uma vez só, mesmo desacostumada, não conseguiria fazer
aquilo só com coquetel de espumante. Sua garganta queimou e ela tossiu. Seu
colega de quarto achou graça naquilo e lhe deu tapinhas delicados nas costas,
enquanto alisava uma de suas coxas com a outra mão.
Já um pouco tonta e entorpecida, lembrou-se
do filme da Bruna Surfistinha, que assistira horrorizada há alguns meses,
quando a vida ainda era boa e podia criticar quem fazia aquele tipo de coisa.
Tirou a roupa de qualquer jeito e parafraseou a frase da garota de programa: “You can do whatever you want”, ou, em
português, “Você pode fazer o que você quiser”. O homem pegou-a, virou e
revirou na cama, fez mesmo tudo o que queria. Pagou uma vez e meia o combinado,
de livre e espontânea vontade. Antes de ir embora de manhã, Sofia cheirou o
dinheiro. Nunca suara tanto para ganhar o pão.
Sentindo-se suja e dolorida, voltou para casa
de manhã. Tomou banho antes de ir dormir, apesar de já ter tomado um no fim da
noite, ainda no motel. E deitou-se na cama ainda antes de o marido acordar.
Pegou no sono rápido dessa vez, e flashes das sensações da noite povoaram seus
sonhos. Acordou de tarde com dor de cabeça, mas isso não era desculpa.
Precisava se acostumar, precisava do dinheiro, e não podia transparecer nada,
uma simples suspeita poderia acabar com seu plano.
As semanas foram se passando. Sofia se
acostumava com seu novo ofício, aprendera a beber, e a não beber, mas acima de
tudo aprendera muita coisa sobre sexo. Posições e fetiches que ela nem
imaginara. Pela primeira vez teve um orgasmo sem ser com o marido, e começava
até mesmo a curtir o trabalho e ter alguns clientes recorrentes. Claro que a
culpa ainda lhe assaltava de vez em quando, o medo e o remorso também, mas
graças à sua nova companheira de trabalho, a vodka (que diferente de outras
bebidas podia ser facilmente disfarçada numa garrafa d’água comum), controlava
suas emoções e seguia em frente.
Dois ou três meses nessa vida, trabalhando
quatro ou cinco noites na semana, e Wisdom começou a chamar a atenção de um
certo empresário da noite paulistana. Este homem, um descendente de japoneses,
baixo e forte, ofereceu a ela a oportunidade de trabalhar em uma de suas
boates, cobrando mais caro de seus clientes – mesmo descontando a parte da
casa, e ainda com a possibilidade de atrair muitos novos fregueses.
Sofia não entendia muito bem essa procura
toda. Era loura, alta e magra, sim, mas não tinha peitos nem glúteos grandes,
não malhava, nem espalhara próteses pelo corpo. Não sabia dançar, nem ser sexy
como as outras, e era tão pudica que antes de começar nesse ramo jamais deixara
sequer o marido ejacular em seu rosto ou sobre os seios, algo que agora era
normal. Aliás, o marido parecia ter ficado feliz depois que ela levara algumas
de suas novas descobertas para a cama deles também.
Estava há uma semana já na boate, onde
começara a ganhar um pouco mais e estava guardando o que excedia seu antigo
salário – para a faculdade dos filhos um dia, ou uma viagem, algo assim. Foi
então que um colega de escola, de sua adolescência, reconheceu-a no trabalho, á
noite, e veio falar com ela. Mas, julgando tratar-se de outro cliente na noite,
sem reconhecê-lo, falou em inglês com ele, e se apresentou com o nome de
guerra. Enquanto conversavam por alguns instantes, ele olhava para ela com o
olhar fixo e um sorriso bobo, quase que encantado, e ela pensou que esse com
certeza lhe renderia algum dinheiro essa noite.
Quando Sofia não percebeu que seu cliente era
um antigo conhecido, ele se aproveitou e não disse nada, deixou ela fingir que
era Wisdom, conversou com ela em inglês (que ele falava melhor) e logo ela
perguntou se ele não queria subir para ela lhe mostrar suas habilidades, o que
ele topou sem demora. Diferente de muitos homens com quem já transara nos
últimos meses, esse cara novo, que dizia se chamar Bernardo, não quis fazer mil
estrepulias na cama, abraçou-a apertado e beijava seu pescoço, gemia de olhos
fechados e puxava-a contra si, parecia que queria absorvê-la. Praticamente
fizeram amor.
Deitou-se na cama, ainda abraçado a ela,
quando terminou. Sofia estava estranhando um pouco a atitude dele, entretanto,
sabia o quanto homens sozinhos poderiam ser carentes e já tinha realizado
diversas taras. Esse poderia ser somente um fetiche dele. De qualquer maneira,
era dinheiro fácil. E era exatamente isso que ela pensava enquanto sorria para
ele, deixando que Bernardo acariciasse seus pequenos seios. “Did you like it?” [Você gostou?],
perguntou, com seu melhor sorriso inocente falso. Mas nada que já vivera nest
profissão poderia tê-la preparado para a resposta do homem que a poucos
instantes estivera gemendo em seu ouvido.
“Eu conheço você.”
Por um momento, Sofia se esqueceu de que era
Wisdom e não falava português e apenas arregalou os olhos, enquanto sua boca se
paralisava, meio aberta, como alguém que ia dizer uma frase de efeito e percebe
que soaria estúpida. Quando lembrou da personagem, gaguejou que não entendia o
que ele falava, mas não conseguia disfarçar o espanto. Ele apenas sorriu,
compreensivo, disse que ela poderia ficar tranquila e que ele guardaria seu
segredo. Bernardo chamou-a pelo nome, seu verdadeiro nome, uma palavra que
jamais havia sido pronunciada naquele ambiente, e que não deveria estar ali.
Era sacrilégio. Como magia, das mais poderosas, a palavra mágica destruiu a
máscara de Sofia, seus olhos se encheram d’água, sua garganta doía e sua boca
se contorcia. Nada ela pôde fazer, além de se agarrar a Bernardo e chorar.
Depois de alguns minutos apenas abraçado a
Sofia, Bernardo acendeu um cigarro, depois de enxugar-lhe as últimas lágrimas.
Depois da primeira baforada, sorriu para ela da forma mais terna que podia e
lhe assegurou de que não contaria nada a ninguém. A garota de programa se
sentia humilhada, violentada. Wisdom era forte, resiliente, encarava qualquer
um que aparecesse em sua cama com um sorriso malicioso nos lábios e uma língua
estrangeira nos gemidos, mas Sofia era fraca, tímida e submissa. E pior, Sofia
se sentia culpada, pela garota que matara, pelo marido que vinha traindo e por
todos a quem enganava diariamente, desde sua família a seus clientes.
Percebendo o desconforto dela, o homem voltou a falar em inglês, cofiando a
barba enquanto terminava de fumar. Sofia olhava atentamente, mas não conseguia
se lembrar de onde ele poderia conhecer o cara.
Bernardo era mais baixo que ela. Todo mundo
era mais baixo que ela. Mas não podia ser chamado de baixinho também. Não era
magrelo, nem gordo e também não tinha músculos suficientes para se dizer que
estava em forma. Suas características mais marcantes eram a calvície, que já
comera boa parte do alto de sua cabeça e tudo aquilo que um dia poderia se
chamar de franja, e também a barba cheia e espessa. O cabelo crescia dos lados
e na nuca, tachado de grisalho em alguns pontos. Tinha os olhos fundos e a
testa permanentemente conjecturada numa expressão agressiva, que combinava
perfeitamente com seus olhos fundos para formar uma autêntica ‘cara de mau’,
mas sua voz era surpreendentemente calma e até um pouco aguda. Era um homem
sereno e aparentava mais idade do que realmente tinha.
“Don’t
you remember me?” [Você não lembra de mim], ele disse. E ela não lembrava
mesmo, então ele contou que mudara de nome há algum tempo, mas que, quando se
conheceram, chamava-se Diego. Sofia vasculhou a memória atrás de possíveis
Diegos. Conhecera um na faculdade, mas era negro. Mais a fundo, lembrou-se de
outro Diego, um garoto meio esquisito, que mal conseguia conversar com as
outras crianças e travava completamente se tivesse que apresentar qualquer
coisa. Um menino problemático que arranjara briga algumas vezes e em outras
roubou dinheiro dos poucos colegas que tinham algum.
Quando reconheceu a criança-problema no
barbado a seu lado na cama, o queixo de Sofia caiu. A última pessoa que
esperava encontrar em seu novo ofício era um antigo colega do primário. Ainda
assim, sempre é divertido topar com alguém do passado. Passaram alguns minutos
conversando sobre a infância e a adolescência, lembrando de antigos
companheiros de escola. Bernardo, que insistia em não ser mais chamado de
Diego, revelou até que era apaixonado por Sofia na quinta série, por isso não
resistira ao impulso de transar com ela quando a reconheceu na boate, admitiu
com uma certa vergonha. Um pouco ofendida, um pouco lisonjeada, Wisdom sorriu,
corou e disfarçou, com o charme sacana profissional que dominara com a
experiência.
Transaram de novo antes que ele fosse embora,
mas desta vez não era o pequeno e tímido Diego apaixonado que estava na cama,
mas sim o experiente Bernardo. Wisdom conhecera muitos tipos de homens em sua atual
profissão, mas este homem gostava de sentir dor como poucos. Pediu várias vezes
para que a prostituta lhe batesse no rosto e nas nádegas, arranhasse as costas
e torcesse os mamilos. E ela fez, sem o menor problema. Até gostava quando os
caras curtiam levar uns tapas, era relaxante e altamente erótico ter o poder,
dominar a relação a tal ponto que o parceiro tornava-se um objeto, o alvo de
sua ira. Antes de deixar a boate, um pouco sem jeito, tentando parecer educado
e esconder o entusiasmo, Bernardo perguntou se poderia voltar. “Sure.” [com certeza], respondeu ela com
um beijo carinhoso em seu rosto.
E Bernardo, voltou, é claro. Adorava
concretizar já adulto a paixão de adolescência. E Sofia curtia também.
Surpreendentemente, se deitar com alguém que já conhecia, como prostituta,
trazia um enorme sentimento de cumplicidade. Para ela, o relacionamento deles
era um refúgio, sentia-se segura por estar com alguém que a conhecera antes de
tudo mudar em sua vida, e que não a julgava pelas escolhas que fizera, só queria
estar com ela. Pouco importava se ela era uma mentirosa ou assassina.
Depois de uns dois meses com encontros quase
que semanais, Sofia já se sentia confortável o suficiente para se abrir com
Bernardo. Ela lhe contava sobre seu casamento, seu antigo emprego, seu marido.
Falava para ele coisas que não revelava a ninguém, como a saudade que sentia de
tratar pessoas doentes. Falou dos filhos, dois meninos, e de como se preocupava
com o futuro deles e com a possibilidade de um dia descobrirem que sua mãe
perdera o emprego que adorava e vendia o próprio corpo para sustentá-los.
Ficava até ansiosa pela terça-feira, dia em que normalmente o amante-cliente
vinha lhe visitar.
Naquela semana, Bernardo apareceu numa
quarta, já depois das duas da manhã. Até então Sofia tivera dois homens e pelo
menos uns trezentos mililitros de vodka por companheiros. A noite estava
agitada então a “pausa” no trabalho, que era estar com ele, foi ainda mais bem
vinda. Logo que avistou-o no bar tratou de arrastá-lo para o quarto. Trocaram
alguns beijos e carícias, mas algo não ia muito bem na cabeça de Sofia. Talvez
fosse a bebida, hormônios, ou o estresse de sua vida dupla, e por vezes tripla,
mas enquanto deslizava os dedos pelo braço do homem, deu por si mesma pensando
na vaselina que injetara com habilidade dentro de sua última paciente, e
imaginou o caminho do líquido através do corpo, até os fatídicos pulmões.
Parou. Com a boca meio aberta, e os olhos se
enchendo de água. Seu companheiro logo percebeu que não estava tudo bem.
Abraçou-a e afagou seus cabelos louros. Ela se deixou enredar, aconchegou-se e
esforçou-se o quanto pôde para conter as lágrimas, mas, como águas que são, as
malditas simplesmente fluíram por entre suas dores e pálpebras, correndo livres
pelas colinas de suas bochechas até desaguar nas planícies felpudas dos
peitorais de Bernardo.
Ele não disse nada, apenas lhe ajeitou no
próprio corpo e fez carinhos em seu cabelo. Em português mesmo, ela começou a
contar um dia de seu antigo emprego, e ele soube que, falando na língua
materna, Sofia havia deixado a máscara de lado. Entre soluços, lutando contra o
choro contínuo, ela narrou o fatídico dia em que confundiu as bolsas e matou
uma menina inocente de doze anos. Pela primeira vez expôs a alguém toda a culpa
que sentia. Pensava em si mesma como alguém com sangue nas mãos, uma criminosa
que merecia a forca, ou a cadeira elétrica, o que doesse mais.
Os olhos do casal fixaram-se uns nos outros e
Bernardo apenas segurava as mãos de Sofia. Ele não sabia o que dizer, mas conhecia
a dor dela. Tinham exatamente a mesma idade e quase as mesmas origens, mas
vidas completamente diferentes e, no entanto, tinham a culpa em comum. Um monte
de clichês ele poderia lhe dizer, como “você precisa perdoar a si mesma”, “com
o tempo isso vai passar” e “aprenda com esse erro e não faça de novo”. Até
porque, se não fossem verdade não se tornariam clichês, então ele proferiu
todos, como se algo que dissesse pudesse realmente ajudá-la. Recompondo-se,
Sofia fitou-o meio desesperada, desculpando-se por ocupar todo o tempo, pelo
qual ele tinha pago, com suas reclamações. Bernardo tentou parecer o mais
compreensível que podia, dizendo que não havia nenhum problema e que ele
gostava de ser útil a ela de alguma forma. Trocaram um beijo nos lábios enquanto
se despediam.
Mas as emoções da noite ainda não haviam
terminado, oh não, quem dera tivessem. Quando Sofia desceu do quarto de volta
para o salão comum, que nesta noite de sexta-feira, pouco depois do início do
mês, estava abarrotado, caminhou insinuante por entre poltronas com homens
sentados e mulheres de pouca roupa sentadas nas coxas deles. Um prostíbulo é
quase como uma balada comum dessas que os jovens frequentam, com a diferença de
que nele o homem tem praticamente certeza de que fará sexo com a mulher que
escolher, desde que pague. Isso dá aos homens uma autoconfiança enorme para
agir como grandes conquistadores.
Um dos homens ali presente chamou a atenção
de Sofia. Sofia viu o próprio marido na boate onde trabalhava. Um cara que
ganhava menos que ela, e que, segundo ele mesmo, havia perdido o cargo de
gerente da loja onde ganhava o pão, e era só um vendedor. Então, Renan, que
dava menos dinheiro para as contas da casa, tinha dinheiro para gastar com
prostitutas. Mas Sofia só pensou nisso num segundo momento. No primeiro momento
ela apenas se escondeu, evitou o cara, viu Bernardo por ali, levou-o para um
quarto e contou a ele tudo que estava acontecendo. Contou que o marido dela
estava ali embaixo, bebendo, ansioso para gastar com uma prostituta um dinheiro
que teoricamente ele não tinha. Por mais que cerrasse os dentes, por mais que
engolisse o choro, ele subia de volta, e Sofia nãoconseguia evitar chorar, e
continuava falando, entre soluços, com a boca naquele formato estranho que
parece um sorriso inadequado de quando as pessoas estão chorando.
Bernardo não sabia muito bem o que fazer. O
que ele poderia fazer? Descer lá e começar uma briga? Só o faria ser expulso da
boate e ainda iria expor Sofia para o marido. Então Bernardo só olhava para
ela, com o rosto lavado e abraçada a ele, e procurava algo para dizer que
pudesse consolá-la ao menos um pouco, mas não estava nem perto de encontrar
algo. Não há no mundo algo que console uma mulher que faz programa escondida do
marido para sustentar a família enquanto ele mente, esconde dinheiro e gasta
com garotas de programa. O problema aqui, de forma alguma era o sexo, mas sim a
grande mentira.
Sofia puxou o pescoço de Bernardo e o beijou,
e continuaram beijando por alguns momentos, até que ela o fez se deitar de
costas sobre a cama, de barriga para cima. Só abriu as calças dele, não tirou a
camisa nem nenhuma outra peça de roupa. Ela já estava de minissaia mesmo, só
colocou a calcinha de lado e sentou sobre ele. Ele não fazia nada. Ela, por
cima, agarrada ao pescoço dele, fazia todo o movimento, alternando os gemidos
do sexo, com os soluços de mágoa e o ranger de dentes da traição e da vingança.
Ela fez, e fez de novo, até que um orgasmo a ajudasse a dissipar ao menos uma
parte da tensão que vinha sentindo desde que pousara os olhos no marido. Até
que fosse obrigada a relaxar, enquanto as endorfinas desabaladas avançavam por
seu corpo exausto. Depois de gozar, Sofia relaxou.
Deitados na cama lado a lado, Sofia e
Bernardo passaram algum tempo apenas olhando para o teto manchado, retomando o
ritmo da respiração. Até que ela disse “eu preciso de uma prova”, e ele
completou “porque ele não pode saber que você viu ele aqui”. Foi Bernardo quem
chegou à conclusão mais rápido: “procure o holerite dele”, e foi isso que Sofia
fez. Ficou com Bernardo no quarto por um tempo, esperando que o marido fosse
embora, depois continuou trabalhando, mas antes de ir embora, seu amante lhe
deixou o número de telefone, algo que até então ela não tinha, e disse que ela
poderia ligar a qualquer momento, se quisesse ou se precisasse de algo, porque
o trabalho dele tinha horários muito flexíveis, e até mesmo no meio da noite,
ou do dia, ele poderia vir ao socorro dela.
Sofia foi para casa de manhã, ainda há tempo
de encontrar o marido tomando café e lendo jornal antes de ir para o trabalho.
“Como foi o trabalho essa noite, amor?”, ele perguntou, como sempre. Sofia
respondeu “difícil, muita gente chorando no hospital”. “Alguém morreu?”
perguntou Renan. “Talvez, ainda não, mas pode acontecer nos próximos dias” e
levou a xícara de café à boca, já sem batom, com a outra mão cravando as unhas
na própria palma, por debaixo da mesa. Quando o marido saiu para trabalhar,
Sofia foi procurar os holerites nas coisas dele, e encontrou sem muitas
dificuldades. Muitos trabalhadores registrados guardam os recibos de pagamento,
porque podem ser úteis em uma eventual ação trabalhista no futuro. Descobriu
que ele nunca havia perdido a função de gerente, continuava ganhando o salário
mais alto. Ela tirou alguns dos papéis, mais recentes, e guardou. Agora, com
provas, ela poderia agir.
Ponderou se devia pedir o divórcio. Nem ele,
nem os filhos, nem as famílias dos dois gostariam disso. E também extinguiria o
valor de tudo que ela vinha fazendo nos últimos meses para manter a família.
Mas também não queria continuar com ele, um homem que enganava, escondia
dinheiro da esposa, tirava dos filhos para gastar com prostitutas. Mas ela
mesma era uma prostituta agora, o pior era ele se fingir de coitado e esconder
dinheiro enquanto ela abria as pernas e deixava que homens a usassem para
compensar a falta deste mesmo dinheiro na casa. Dinheiro. A palavra soava
pesada, mesmo que não dita. Dinheiro. Dinheiro. Dinheiro. Arrependia-se de tudo
que fizera por dinheiro. Será que, em outro mundo, ela teria simplesmente
permitido que o marido se encontrasse com prostitutas de vez em quando se ele
tivesse aberto o jogo desde o início? É claro que não. Nem mesmo agora que era
uma delas. As pessoas sempre acham que carência afetiva e carência sexual devem
ser supridas pela mesma pessoa, com exclusividade de direitos. Mas
eventualmente essa premissa cai por terra quando os dois lados deixam de estar
satisfeitos na relação, e com o tempo, muitas vezes não sobra nem amor nem
sexo, só o contrato de exclusividade. Talvez ela ainda suprisse a carência
afetiva de Renan, mas a carência sexual era das prostituas. Outras prostitutas.
Enquanto ambas as carências de Sofia estavam nas mãos de Bernardo. Por que
continuar casada então?
Depois de passar o dia todo pensando no
futuro, cochilando de vez em quando, sonhando com dinheiro, com os filhos, com
o marido e com Bernardo, com meias-calças abertas entre as pernas, com
maquiagens e esmaltes, roupas curtas e perfumes fortes, Sofia se levantou para
trabalhar no fim do dia. Deixou uma carta na gaveta de cuecas do marido, com os
três holerites mais recentes, a carta dizia “vamos nos separar”, com um ponto
final claríssimo, não era uma briga, não era uma DR, não era um pedido. Era o
fim, que não permitia duplos sentidos de interpretação, não dava margem para
“sim” ou “não”. Mas na verdade ela nem pensou muito, só chegou à conclusão de
que queria se separar e colocou sua vontade em prática. Não pensou que isso
envolveria advogados, não pensou que no processo teria de explicar de onde vem
sua renda e não pensou em qual seria a reação do marido.
É claro que ele não aceitou isso assim numa
boa quando chegou em casa lá pelas dez da noite. Quem aceita um divórcio de
primeira? Renan tomou uma dose de uísque para se acalmar. Agir impulsivamente
nunca fizera seu estilo, não porque não sentisse raiva, porque sentia, e muita,
mas era frio o suficiente para conter suas emoções e usá-las da melhor forma
possível. Além disso, acabava passando para os outros a imagem de um cara
bondoso, paciente e tolerante. Renan tomou mais uma dose de tranquilidade,
entrou no carro e dirigiu até o hospital onde supostamente Sofia trabalhava. O
plano era forças a esposa a falar com ele durante o expediente, porque assim
ele tinha chance de fazê-la dizer exatamente o que se passava em sua cabeça, na
pressa de voltar ao trabalho.
Na recepção do hospital, disse que se chamava
Renan, que era marido da enfermeira Sofia Rodrigues e que precisava falar com
ela. A recepcionista, nova no cargo, ligou para o ramal da central das
enfermeiras, e a chefe da enfermagem atendeu. A enfermeira-chefe, que não tinha
tempo a perder, disparou na lata “faz meses que a Sofia não trabalha mais aqui”.
A recepcionista repetiu isso. Discutiram por alguns instantes, Renan crente que
a menina estava errada, mas ela lhe assegurou que, meses atrás, Sofia fora
demitida. Já de volta ao estacionamento, Renan percebeu que o carro da mulher
não estava ali junto aos outros nas vagas reservadas para os funcionários. E
pela segunda vez no mesmo dia, Renan lutava contra a raiva. A mesma raiva que
Sofia sentira na noite anterior, a sensação de ser enganado por alguém em quem
se confia.
Renan voltou para casa e bebeu, e então
montou um plano. Era fato que sua esposa estava trabalhando, já que o dinheiro
que sustentava a família chegava todo mês, ela saía toda noite para trabalhar,
e voltava pela manhã. Quando Sofia chegou em casa, o marido já havia saído, os
filhos já estavam na escola, como sempre, e na mesa da cozinha estava a carta
de divórcio que deixara para o marido, com uma faca das grandes cravada bem no
meio, mas Sofia não deu muita importância para aquilo, não se importava mais com
os sentimentos do marido. Dormiu o dia inteiro, sem qualquer peso na
consciência. E Renan entrou em casa enquanto ela dormia, pegou a faca na
cozinha e foi até o quarto. Sofia ainda dormia, o marido caminhou até a cama e
por longos minutos, inexpressivo, apenas a observou, contando sua respiração.
Deixou que a mão direita pairasse sobre o rosto dela, e levantou a faca com a
mão esquerda. O desejo de acabar com a vida da esposa, uma facada de cada vez,
queimava-lhe a alma, mas resistiu. Isso só lhe traria problemas, e também não
lhe daria o gosto de ver Sofia amargando a derrota, após ter seus segredos
expostos. Saiu de casa levando a faca e voltou ao plano original.
Renan faltou ao trabalho, ficou de tocaia em
frente à casa e seguiu Sofia quando ela saiu para trabalhar, e assim chegou à
mesma boate onde estivera duas noites atrás. A hipótese da mulher ter virado
prostituta era absurda, mas, não sendo impossível, e amarrando todas as pontas
soltas, só poderia ser isso. Deixou o carro na rua e subiu até a boate, onde
fez questão de procurar Sofia. Encontrou-a respondendo pelo nome de Wisdom e
falando em inglês. Tocou seu ombro e ela se virou.
Sofia, surpresa, encarou o marido. Seus olhos
refletiam as luzes vermelhas da boate e sua boca permanecia entreaberta, sem
saber o que fazer. Renan não desviava os olhos pequenos de sua mulher, nem
sequer piscava. Suas sobrancelhas enraiveciam o rosto, mordia os lábio e sentia
os jovens pelos minúsculos da barba por fazer espetarem uns aos outros. Abriu
rapidamente a boca, apenas o mínimo suficiente para cuspir no rosto de Sofia,
antes de sair correndo.
Sem reação, com saliva escorrendo pelo lado
do nariz, a prostituta foi socorrida por uma colega e levada para dentro do
bar. Recobrando a consciência, furiosa, temerosa e humilhada. Sofia ligou para
Bernardo, contou o que seu marido fizera. Bernardo conversou com ela e a
acalmou, depois disse que a amava como há muito tempo não amava ninguém. Ela
confessou que também o amava e os dois riram um pouco, não conseguindo conter o
alívio que os sentimentos revelados lhes causavam. Mais calma, Sofia se
despediu de Bernardo e pediu que ele aparecesse para fazerem amor, e riram mais
um pouco quando ela usou a expressão. E ele prometeu vir assim que pudesse e
disse que estava ansioso para beijá-la.
Renan voltou o mais rápido que pôde para
casa, com os pensamentos borbulhando em sua mente em espirais que subiam e
desciam pelos mesmos temas, como raptar os filhos, contar o segredo da esposa
aos pais dela, e em várias maneiras de matá-la que jamais colocaria em prática.
Mas quando estava chegando em casa, um motoqueiro parou ao lado de seu carro,
apontou-lhe uma arma e mandou que entregasse a carteira. Renan obedeceu, e o
homem disparou duas vezes contra seu peito antes de arrancar com a moto. Renan
sangrou até morrer sentado no carro. A polícia trabalha com a hipótese do
latrocínio. Sofia nunca mais viu Bernardo, recebeu o seguro de vida do marido e
parou de trabalhar.